quarta-feira, 2 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 84



23:32

De novo estou com fome, de novo não jantei, e de novo escrevo. Talvez eu devesse comer em vez de perder tempo escrevendo isso. Já vi Cris hoje mais cedo, e de novo ela não vai jantar comigo.

Maria Que Janta Sozinha.

O caso é que li um pouco dos livros de Sarah, uns que falam sobre perda de memória, busca da identidade. Essas coisas que não entendo. Quer dizer, entendo que não lembro, e não lembro de quase nada, embora acredite que haja uma luz em algum lugar.

Luz.

Existe uma luz muito forte, a tal clareza de bomba nuclear que, ainda não sei onde, existe nesta história.

Li que quando a gente sofre um trauma a gente pode esquecer de algumas coisas.

Trauma forte.

O cérebro apaga.

Ou recalca.

Ai, psicanalistas. Sarah está me contaminando com sua loucura. Mas não sou louca. Maria Que Não É Louca.

Ouço barulhos parecidos com os de uma máquina de lavar. Seria possível alguém lavando roupa as 23 e 38? Claro que é possível. Existe muita coisa aqui que ainda não entendo. Os garotinhos, por exemplo. Jonas e Marcos.

Jonas, não sei se já comentei, tem o mesmo nome de um irmão meu. Ou acho que foi meu irmão. Talvez eu tenha inventado isso também. Assim como Maria, a mãe, tem o mesmo nome que o meu, e só coloquei esses nomes porque – você sabe – sou uma péssima escritora.

Se você não lembra de nada, como lembra que tem um irmão com o nome de Jonas?

Talvez em algum canto da floresta do meu cérebro esteja a resposta que vai me fazer sair do outro lado.

Esqueci de tudo, ou quase. Ou lembro de algumas coisas, depois esqueço de novo. Acredite, não sei o que andei escrevendo por aqui, e não pretendo reler.

Esses dias Sarah falou, e espero que ela esteja brincando, que depois que eu terminar de escrever a história de Clara, ela podia publicar isso aqui. Nem em mil anos, falei, e mesmo que ela tenha rido, porque ela sempre larga suas charadinhas psicanalíticas e sorri, na certa já sabendo que vou querer matar essa mulher, e deixa tudo no ar. Mas vou escrever até o fim, antes de jogar tudo no lixo.

Ninguém jamais vai ler isso aqui.

Prefiro morrer antes.

Mas talvez nem todos tenham morrido. Eu não morri. A menos que seja um espírito vagando e acredito estar escrevendo uma historinha muito da ruim.

Sinto fome. Não consigo ver o homem alto e moreno de cabelos lisos, nem Lara. Nem Maria, na verdade. Mas estou me perdendo – de novo. Preciso conhecer melhor meus personagens, dizem os escritores, mas não sei muito de Jonas e Marcos. Ou melhor, não consegui inventar nada que valesse a narrativa.

Um deles defendeu Clara. Quando Claudius obrigou ela a beber.

Um deles fugiu de casa.

Vamos lá, Maria, você não pode ser tão ruim assim.

Invente qualquer coisa, pelo amor de Deus. Ninguém vai ler mesmo.

Um deles era filho de Lara.

Meu deus, que merda de história, e como me odeio por não conseguir criar uma historinha que qualquer criança conseguiria. Qualquer criança.

Qualquer criança.

Talvez a criança que fui e não lembro.

O que foi que aconteceu que me trouxe a este lugar?

Sarah, maldita, se você sabe a verdade, e eu tenho certeza que sabe: por que não me conta e acaba com este pesadelo?

23:51

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