domingo, 13 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 90


19:09

O tempo está começando a mudar. Dizem que falar do tempo é assunto universal quando a gente não tem assunto.

Ia escrever alguma coisa que, de novo, esqueci. Falei com Cris antes, ela foi tomar banho. Talvez eu tome mais tarde, sozinha. É claro, sozinha, com quem ia tomar banho? Mas talvez a gente jante antes. Ouvi uma discussão por aqui e confesso que fiquei incomodada. Bate-bocas me incomodam. Agressões me assustam.

Me trazem de volta memórias ruins, embora ainda não consiga falar sobre isso.

Não consigo falar porque não lembro ou porque não quero?

Não consigo porque não posso. E não interessa, vou mudar de assunto. Apenas queria registrar que essas agressões me irritam. Duas pessoas aqui estavam discutindo. Não chegaram a brigar, mas pelo silêncio que se seguiu, e ouvi que tinha mais gente lá, deve ter ficado um climão. Que bom que não foi comigo, e quase agradeci por quase ninguém falar comigo aqui.

Pelo menos também não brigam comigo.

O caso é que Sarah me emprestou o diário de uma tal Anne, que escrevia enquanto estava enclausurada com a família em um esconderijo em meio à guerra. Não sei por que Sarah quis que eu lesse esse livro, se para ler a história de uma garota que escreve um diário, ou se para pensar na família dela. Notei que ela tinha algumas questões edípicas, porque não se dava nem um pouco com a mãe e adorava o pai.

Meu deus, Sarah está mesmo me contaminando com suas loucuras.

Sim, eu li um pouco sobre Complexo de Édipo, mas confesso que me deu nojo. Ou não entendi nada. Quer dizer, filha com pai? É isso mesmo?

Como Clara e Claudius?

Me deu nojo, raiva, medo, tristeza. Talvez não tenha entendido direito como funciona, ou sequer queira pensar nisso. Você quer dizer que Clara gostava do que Claudius fazia com ela? Vá para o inferno, nem em mil anos. Fodam-se, psicólogos. Mas talvez o primeiro homem que ela teve, o primeiro homem que ela conheceu, o homem que era para ter sido seu herói, seu modelo de outros homens que viriam no futuro, se viessem, a traiu. Esse homem abusou dela.

Talvez muitas vezes.

Talvez muitas vezes.

Repeti a frase de propósito. Como algo que ficou trancado em mim. O primeiro homem da vida de Clara marcou ela, como gado, talvez para o resto da vida.

Maldito.

Preciso ler mais dessa Anne. Não sei se ela passou pela mesma coisa que Clara. Mas acredite: mais do que posso entender, e mais do que posso dizer, sequer dizer a mim mesma, é tudo sobre Clara. Essa história é sobre aquela garotinha que sumiu no tempo.

E talvez daquela Maria que sumiu também.

19:25

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