sexta-feira, 25 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 93


21:27

Fiquei uns dias sem escrever. Duvido que você tenha sentido falta. Eu quase me acostumei. Maria Acostumada. O caso é que senti uma dor grande como a vida anteontem, e Sarah me deu algumas ordens. Claro que não gosto de ordens, mas de vez em quando Sarah faz isso e quero acreditar que ela sabe o que está fazendo. Então escrevo. E me perguntei:

Se essa dor me volta, embora ela não esteja aqui neste exato momento, neste quarto-cela de onde escrevo, hoje sem Cris ou qualquer ser vivo por perto, por que não falo da dor de Clara? Porque, de alguma forma, as dores devem estar conectadas. Quer dizer, não planejei escrever nada disso, eu, péssima escritora. Apenas escrevi e escrevo, e se essa história está vindo de mim, do longe, de ontem, do nunca, sei lá, ela deve ter algum traço biográfico. Sempre tem. Como disse, Sarah está me contaminando com sua loucura. Malditos psicanalistas.

Mas vá lá. Tenho que falar da dor da pequena Clara. Da dor que Claudius, o maldito homem alto e moreno de cabelos lisos, Dr. Claudius, que não sei se um dia ela conseguiu chamar de pai, fez ela sentir. Talvez ela tenha dito que estava doendo, talvez ele tenha proibido ela de contar. Talvez a promessa de dores piores para a pequena Clara. Quem ia acreditar? Quem ia acreditar na criança, filha do médico, respeitado e o caralho a quatro, maldito seja.

Li um pouco sobre cognição, crenças e outras coisas que Sarah não aprecia, e dizem que existe um troço chamado falsa memória. Então, caso tivessem delatado Claudius, seu advogado – porque ele tinha dinheiro para pagar um bom – teria dito isso: Clara imaginou que foi abusada, mas isso na verdade jamais aconteceu.

Jamais porque não foi na bundinha do advogado, não é mesmo?

Que bom que jamais lerão isso aqui, mas confesso que um misto de raiva, tristeza e dor me invadem quando escrevo isso. Em minha mente, lá está Lara, a jovem tia, passeando no corredor, talvez cuidando de Clara, que é o que ela deveria ter feito, em vez de ficar trancada no quarto com o cunhado, putinha. Ela era jovem, bonita, talvez tivesse cara de songamonga, porque tinha que parecer uma garota exemplar. A que cuida da sobrinha porque a irmã foi internada no hospital.

Maria, a mãe.

E se é possível ter saudade de um personagem, posso dizer que sinto saudade dela. Não sei explicar essas coisas, li que é comum um escritor (e isso deve ser ainda mais verdade para escritoras) se afeiçoarem a seus personagens.

Queria falar do piano. Queria falar de Clara sobre as costas de Maria, as duas sorrindo, atiradas sobre a grama. Sinto vontade de chorar, e sinto vontade de chorar quando escrevo determinadas partes desta história. De alguma forma, a dor que vai, volta, e talvez essa seja a dor de Clara, de Maria. De Jonas e Marco, cujas histórias recém intuo.

Claudius pegou Clara pela mão, saiu com ela, Maria disse para ele ficar. Ele empurrou Maria e saiu com Clara porta afora. Maria sabia o que ele ia fazer com Clara? Em minha mente de criadora fajuta, vejo Claudius levando Clara para dentro de um armazém. Escuro. E tudo some. Não é branco, como antevejo que seja o fim desta história, mas escuro. Um buraco-negro.

O que aconteceu dentro do armazém?

O que você acha?

Desculpe, não consigo escrever.

Não consigo escrever.

Dói. Não vejo nada.

Claudius levou Clara para dentro do armazém escuro.

Será que Clara fazia algum desenho na escola? Ela deve ter pedido ajuda, gritado por socorro. Como ninguém viu? Em minha mente, existe um pedaço de papel nesta história, que contava a história do papai com a filhinha – mas o papel foi amassado, jogado no lixo. Meu deus, Maria jamais viu esse desenho. Claudius amassou e tentou esconder. Na verdade, jogou fora. A professora não mandou chamar os pais de Clara na escola?

Ninguém ia encostar nele.

Médico. Respeitado. Intocável.

Alguém deve ter conseguido encostar nele.

Sim, encostaram nele. Não sei se é assim que termina essa história, e vou continuar escrevendo para descobrir isso. Mas espero que deste lugar estranho e escuro, escuro como um armazém fechado, de onde estou tirando essa história, a floresta do meu cérebro, escuro como um hospital, ou como o umbral, se ele existir, saia alguma coisa mais. Quem sabe encostaram no Doutor Intocável.

Quem sabe Maria, a mãe, tenha saído do hospital.

Talvez Clara tenha sido salva na última hora.

Talvez não.

Paro para pensar. Não sei mais o que escrever. As imagens se confundem em minha cabeça. Meu deus, como odeio esta história. Mas por isso mesmo tenho que escrever até o fim.

Até o fim.

21:56

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