quarta-feira, 5 de março de 2014

Depois do Nanowrimo - Dia 70


23:57

Estou com fome.


Sei que já escrevi isso. Já escrevi antes de jantar, e disse que estava com fome. Mas hoje vou dormir sem jantar. Nem eu nem Cris comemos, talvez porque ambas nos amarremos e agora não existe mais comida aqui, pelo menos não hoje. Então vou escrever. Duvido que passe minha fome, nem sei como ela vai lidar com isso, mas provavelmente não vou conseguir dormir agora, e então minha sina continua sendo escrever, e tentar seguir em frente com esta história.

Não sei se é a fome, mas acaba de me ocorrer que Clara tinha distúrbios alimentares. Sim, ela comia e vomitava, e não sei se Maria sabia disso. Talvez pergunte para Sarah o que significa uma criança comer e vomitar, qual o grande sentimento que ela não conseguia digerir e tinha que jogar fora. Talvez Claudius soubesse que ela jogava a comida fora, e talvez tenha batido nela por causa disso. Quando digo que talvez, é porque sou uma escritora muito insegura, não tenho certeza de nada. Mas se o inconsciente, por algum motivo, é o verdadeiro ghost writer desta história, é porque isso que chamo de talvez aconteceu com certeza.

Aconteceu na minha ficção.

É só uma historiazinha que estou tentando criar, não é?

Mas se for, de onde vêm as imagens criadas pelos escritores? De onde tirei esta história e por que afinal insisto em contar uma história dessas?

Não importa, o que importa é continuar escrevendo. Clara tinha distúrbios alimentares, e minha fome despertou essa imagem: a menina que comia, ou não comia, e logo em seguida vomitava. E tentava esconder o vômito, ia no banheiro, ninguém imaginava que as necessidades básicas dela eram outras. Como Maria não percebeu, a filha comendo e comendo, e tão magrinha? É porque às vezes ela não comia. Clara não queria almoçar, não queria jantar. E como Claudius forçava ela a fazer o que não queria, forçava a comer, forçava a ser comida mais tarde, e ninguém deve ter suspeitado que as coisas estavam interligadas. Afinal, Claudius, o doutor, deveria entender melhor do que ninguém de saúde. E se ele não falava nada, ninguém falava nada.

Malditos. Ninguém falava nada.

Sarah me explicou que existem segredos entre-famílias, nas famílias em que acontecem abusos entre si. Existe um pacto de ninguém falar nada.

E ninguém fala nada.

Sei que minha fome continua. Penso em Cris, mas também penso em Clara. A fome de Clara. A raiva de Clara, a dor de Clara.

Ninguém falava nada, e se ela tivesse falado alguma coisa, não iam acreditar.

Afinal: era apenas uma criança.

Deus do céu, era apenas uma criança.

O que foi que fizeram com ela?

A fome vai aos poucos sendo substituída pela dor em meu espírito. Por um segundo, tive vontade de chorar, e foi como um espírito encostando em mim, me soprando sua dor, e então indo embora.

Vou dormir com fome hoje. Mas amanhã posso comer mais cedo, e a fome será coisa do passado.

Só não sei se Clara teve um dia a mais para isso.

00:19

Nenhum comentário:

Postar um comentário