sexta-feira, 28 de março de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 81


Estou com fome, e não vou jantar com Cris hoje. A porta está aberta. Ninguém nos corredores. Decidi escrever, talvez aquilo que escrevo não seja tão ruim, afinal de contas. Mas hoje me ocorreu algo terrível. Sinto fome, então meu corpo não vai chorar. Neste momento.

Talvez depois.

Sarah me disse que a gente tende a repetir os padrões de nossos avós, pais, passamos para nossos filhos, se tivermos algum. Na verdade, ela não disse tudo isso, porque sabe que não lembro de parente nenhum, não lembro de nada. Eu que deduzi. A gente tende a repetir os padrões. A gente passa adiante aquilo que nos foi passado, por mais que a gente odeie, renegue. Que diga que jamais faremos aquilo. E que jamais deixaremos que aconteça o mesmo com nossos filhos.

Então que me ocorreu que...

Pausa para respirar. Mas tenho que ir em frente e escrever isto.

Me ocorreu que talvez Maria, a mãe, também tenha sofrido abuso. Talvez, quem sabe. E arrepios passam pelo meu corpo, e sim: tenho vontade de chorar.

É claro que aquilo pelo qual Maria estava passando era um abuso. Mas pensei que ela pode ter sofrido abuso na infância. Podia ter tido um pai de merda.

Como Clara.

Meu deus, quero tanto terminar esta história. Mas preciso dar um fim pra ela. Preciso saber criar algo que... Eu nem sei mais. Não sei o que escrevo, apenas escrevo. E hoje me ocorreu isso, em minha mente de péssima escritora, que não consegue nem inventar uma historinha: Maria, a mãe, sofreu abuso, talvez em sua infância. Só pode ter sido em sua infância. Mas não consigo visualizar de quem. Um pai, avô? Tio? Talvez ela tenha crescido em uma família parecida com a família na qual estava. Faz sentido. Alguém abusou de Maria, a mãe, e Clara sofreu o que a mãe sofreu.

Até onde vai isso?

Por que você escolheu contar uma história dessas? você me perguntou.

Não escolhi nada. Apenas escrevo.

Talvez o vô de Maria.

Como dói escrever.

E ouço o piano como a me dizer: continue, nós vamos sair do outro lado.

É isso tudo o que quero. Sair do outro lado. Do outro lado daquele branco sem fim, um branco de explosão nuclear. Só quero saber, ou talvez nem isso queira saber, o que restou. Se é que restou. Mas preciso entender melhor meus personagens. E continuo tateando seus dramas, suas esperanças. Sim, alguém ali devia ter esperança. Existe um fim para isso tudo.

Maria Que Ainda Acredita.

Um último sopro de vida. Último.

Ainda assim: sopro de vida.

E vou sonhar com ele hoje à noite.

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