quarta-feira, 21 de novembro de 2012

21/11/12 e Ali Luke


Nesta data cabalística de 21/11/12, a um mês do fim do mundo (rá!), a dica cultural é o Aliventures, da escritora Ali Luke. Ali você pode dar seu e-mail e receber a newsletter toda quarta com dicas motivacionais para escrever. Inclusive pode ler seu e-book How to find time to write, baixado gratuitamente do site para quem assina a newsletter, assim como outros belos artigos sobre escrever. Bem legal seu livro, em que ela fala sobre por que a sua escrita é importante, e que não devemos pensar em auto-disciplina, mas na força do hábito, e em motivação.

Estou no capítulo 2, parei apenas para registrar aqui.
 
E agora, ao trabalho.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Surrender Everyday


A gente tem que se render todo dia, e praticar os princípios que nos afastem das nossas imperfeições, ouvi hoje, e vim pensando sobre a constância e a disciplina que a gente tem que manter se quiser cumprir nossas metas, sejam elas quais forem, especialmente se incluirmos o exercício diário de buscar a excelência em sua arte. Ter aquele esforço a mais, ir dormir uma hora mais tarde (isso é fácil), acordar uma hora mais cedo (isso é difícil), produzir e produzir hoje. Vim na dúvida se deveria escrever um e-mail para meu bom amigo Marcelo, ou um mail para meu bom amigo René, ele que sempre me incentiva a ir um pouquinho mais. Madrugada passada (as madrugadas foram feitas para a literatura, vai dizer), fiz um exercício literário que começou como uma brincadeira e acabou saindo um quase-conto. Escrevi inspirado no grande Brad Mehldau, e em seu monumental solo, ele que estuda, segundo ouvi, mais de dez horas por dia.

Também pensando em agir hoje, vim pensando em mandar o um pouco eterno livro hoje para outro concurso, cujo prazo é no fim do mês. Talvez faça isso depois que terminar este texto, já que desta vez tive a benção de poder mandar o original pela internet. E seguimos no aguardo do resultado da bolsa para elaborar e concluir a história de Carol. Seguimos no aguardo, mas não só no aguardo. O dia é hoje, a hora é agora. Fiquei feliz de saber que meu também bom amigo Matheus também decidiu se aposentar da Esbórnia (bem-vindo ao mundo dos sucos e refrigerantes!). Se eu mesmo não tivesse me aposentado, anos atrás, não estaria escrevendo esta carta para Você, que me lê e visita este blog todos os dias, mas nunca deixa suas pegadas por aqui. Este Você, que não tem rosto e tem todos os rostos, que lê minhas mensagens lançadas ao mar, aqui neste porto chamado Distantes Trovões, que aliás virou nome de café no penúltimo capítulo do um pouco eterno livro. Novas revoluções se aproximam. Como disse Malcolm, by any means necessary.

sábado, 10 de novembro de 2012

Entre Nós


“Precisamos conversar”, disse Selina, “Espere aí que eu já volto”, bateu a porta Franco, quatro horas antes de retornar ao quarto onde havia deixado a esposa. Já era madrugada quando ele trouxe consigo a fragrância etílica para desafiar o perfume de jasmim de Selina, dormindo feito morta na outra extremidade da cama. E eles duelariam por toda a noite, álcool e flor, homem e mulher. Antes de deixar-se desabar sobre o colchão, Franco tentou lembrar desde quando eram casados, mas tamanho suplício, deveriam ser vidas inteiras sem trégua. Quis enumerar quantos dias ficaram sem um olhar sequer. “Vidas inteiras sem trégua”, disse com ódio. E desabou.

Primeiro dia de aula. O jovem Franco e seu vizinho cuidam atentos os movimentos femininos do corredor. Fazem comentários, especulam oportunidades. “Bem que aquela gracinha ali podia ser nossa colega”, aponta Franco para a garota de cabelos lisos pelo ombro, pasta debaixo do braço. Ela se aproxima dos dois e entra na porta ao lado, na mesma sala em que permaneceriam o resto do ano. Seu vizinho diz que os deuses sorriram para ele. Franco sorri de volta. O sino toca. Todos entram, a professora fecha a porta. Dá as boas-vindas, diz que todos estavam cansados das férias e agora iam estudar pra valer. Os alunos riem, fazem piadas. Franco é o último da fila. A menina é a primeira, do outro lado da sala. Começam as apresentações. Os nomes e apelidos sucedem devagar. A espera é longa. A medida em que os nomes vão se aproximando do nome que mais queria saber, Franco respira menos e mais rápido. Nada mais havia ao redor, exceto aquele nome a seguir. Ela, enfim, ergue o braço.

— Meu nome é Selina.

 

* * *

 

Ao acordar, o corpo com o peso do mundo, Franco não olha para o lado. Vai para o trabalho sem se despedir da mulher. Como de costume. Apenas ao fim do caminho, ele recorda o sonho. Franze a testa, ao constatar que a realidade onírica foi fiel à realidade vivida. Foi exatamente daquele jeito que ele a viu pela primeira vez, naquele começo de ano letivo. Vidas inteiras sem trégua atrás. E seguiu com sua jornada de trabalho.

E seguiu com o inferno que era sua vida, sem pensar mais naquele sonho idiota.

Não sabia mais quando Selina estava em casa. E não fazia diferença. Chegar, ir embora, a dualidade que movia seus dias. Franco não suportava mais a esposa e, tinha certeza, o sentimento era correspondido. Achava ela feia, neurótica. Velha. Passava mal todos os dias a caminho do lar. Queria ele não mais ter que voltar. Mas sempre voltava. E os fins-de-semana eram os piores, intermináveis. Por conta disso, passou a dormir mais e mais. Foi então que aconteceu de novo.

Fim do segundo bimestre. Franco senta ao lado de Selina, classe a classe. O aluno mais bagunceiro pede ajuda à aluna mais inteligente. Ele a observa hipnotizado resolver aqueles cálculos trigonométricos extraterrestres. Ela vira para o lado e percebe que o colega pouco se importa com o seno do coseno.

— Você não está entendendo nada, não é? – ela pergunta, insinuando irritação.

— Não. Na verdade, estava aqui olhando para as suas mãos.

— O que tem elas?

— É que eu gosto de mãos e as suas mãos são muito bonitas. Aí, fiquei com inveja do seu namorado que tem esse belo par de mãos para fazer cafuné nele.

— Eu não tenho namorado – ela diz, voltando aos cálculos.

— Não quer arrumar um?

Ela larga o lápis, a face permanece austera.

— Essa é a sua melhor cantada?

— É. É sim. Mas posso pensar em algo melhor, caso não tenha funcionado.

Selina volta-se para o papel a sua frente. “Pois então, pense em algo melhor”. Franco a observa. Séria. Rígida. Absorta na resolução dos triângulos em cima da classe. Súbito, o lápis estanca. E a menina sorri. Um sorriso que se prolonga. E vira para o colega, que corresponde. Franco abre a boca para dizer, então:

O despertador estrondou. Franco, muitos anos mais velho, tentou lembrar o que havia dito para a colega na ocasião. Ao levantar da cama, rumou para o banheiro. Antes de fechar a porta, olhou para Selina, que ainda dormia.

 

* * *

 

O tempo foi passando. Segundo por segundo num interminável de minutos e momentos e semanas e meses. Há muito tempo que Franco não tirava férias. O único repouso que dispunha estava no serviço, que detestava. Não raro, buscava consolo em conversas com amigos, que levavam semelhantes vidas conjugais. Tentava em vão aliviar o sofrimento de uma dor que não doía, que era inércia, que era rotina.

Plantões exaustivos no trabalho seguiram-se. E foi num deles, esgotado e em meio à fria madrugada, que Franco não voltou para casa, adormecendo no sofá do escritório.

Três semanas para o fim das aulas. Franco conversa com Selina dentro do ginásio, ao lado da quadra de vôlei. Ambos estão sentados nas arquibancadas, abandonadas aos dois. “Eu vou morrer se não te der um beijo agora”, diz ele. “Você não vai morrer”, diz ela. “Não. Mas ainda assim quero te dar um beijo”. Selina ergue os olhos para o teto semicilíndrico do lugar. “Me dê três motivos para eu te dar um beijo”.

— Olhe, eu não estou te pedindo em casamento. Eu só quero te dar um beijo.

— Bem, talvez se me pedisse em casamento, eu te desse um beijo.

Franco foi desperto do sofá antes de ver o beijo que iniciou o namoro com Selina. Um novo dia estava começando. A mulher do cafezinho, que tão somente era a mulher do cafezinho, lhe deu um bom-dia afetuoso. “Pra você também, um ótimo dia”, Franco disse, feito moleque faceiro.

 

* * *

 

A vida com Selina permanecia a mesma. Perfeitos estranhos condenados a viverem na mesma casa. Cúmplices, cada qual com sua solidão. Mas Franco deixou de se importar. Os sonhos ficaram mais freqüentes. E eram sempre fiéis ao que havia acontecido. E cronológicos. Franco passeou por todos os lugares que havia levado sua namorada Selina, uma vez mais. Repetiu todas as frases românticas que outrora encheram aqueles olhos femininos de lágrimas, de novo e de novo. Uma vez mais, viveu. E sentia-se muito bem. Sentia-se jovem. Estava apaixonado por Selina, mesmo que não suportasse a esposa da vida acordada. E a vida acordada não tinha mais sentido. E não fazia a menor falta. Cumpria suas obrigações com disciplina, dedicava-se ao trabalho, pagava suas contas. Mas tudo o que queria era chegar em casa e dormir. Sonhar com Selina, linda e jovem que era.

Certa vez, pensou em comentar de seus sonhos com a mulher, mas logo mudou de idéia. Sentia calafrios, tremia apavorado, com medo de que os sonhos o abandonassem. Talvez fosse parte de algum ritual, alguma mágica, cuja a condição para existir era: sigilo absoluto. E confortava-se com a certeza de que, mesmo que descrevesse em detalhes todos os sonhos que estava vivendo até então, nada mudaria entre ele e Selina. Afinal, eram apenas sonhos.

Entretanto, a medida que os sonhos evoluíam, aumentando a euforia e a paixão de Franco, tornava-se quase insustentável não comentar daquilo com alguém. Decidiu então que não faria mal se contasse para o melhor amigo alguns detalhes da sua outra vida. A vida que ele havia escolhido viver, que era muito mais real do que a vida acordada. E foi em um longo intervalo para o café que Franco contou tudo.

— Sabe – disse o amigo –, algumas religiões acreditam que os sonhos são um universo paralelo. Com uma linha de tempo e espaço diferente da nossa.

— Como assim?

— Você disse que os sonhos aconteceram em ordem cronológica, no passado. Mas você pode eventualmente ter um sonho sobre o futuro.

— De algo que ainda vai acontecer?

— Exatamente.

— Que idiotice – riu Franco. —Um sonho é um sonho e fim.

— Talvez. Mas por que você nunca contou nada pra Selina?

— Porque ela não ia se importar.

— Como você tem tanta certeza?

Tudo o que havia entre eles estava morto. Só o que tinha restado eram os sonhos. E ele preferia morrer a estragar isso. E nada mudaria, nada mudaria. O amigo balançou a cabeça, concordando. Voltaram ao serviço.

 

* * *

 

E os sonhos continuaram. Cada vez mais belos, mais reais. Sempre em sua cronologia rígida, imutável. Franco sonhava com as festas do cursinho, as noites acordado estudando para o vestibular, os livros lidos na faculdade. O primeiro emprego. O segundo, o terceiro. Os natais que passaram juntos, na época de seu noivado. Selina, sempre presente. Sempre bela, cheia de vida e ternura. Uma ternura que, talvez por intervenção divina, foi transposta do sonho. Pela primeira vez em muito tempo, Franco voltava a falar com a esposa. Era uma frase ao chegar em casa, outra antes de dormir. Depois, duas frases ao chegar em casa, três antes de dormir. Uma ou outra quando acordava. Vez ou outra, um telefonema no meio da tarde. A intensidade dos sonhos começou a diminuir.

Ao entrar na cozinha, certo dia ao chegar da rua, Franco perguntou ao abrir a geladeira, ares de distraído:

— O que tem de bom pra comer, Sel?

Ela nada respondeu. Depois de alguns segundos, ele ergueu o olhar e viu Selina sorrindo, um sorriso há muito esquecido. Franco perguntou o que havia acontecido.

— Você me chamou de Sel. Há anos você não me chama de Sel.

Franco sorriu, espelho. Ela adorava ser chamada assim, porque “Sel” rima com “Céu”. Ambos piscaram os olhos.

 

* * *

 

Selina e Franco voltaram a jantar juntos, conforme permitia o tempo. Voltaram a jogar cartas, a tomar sorvete juntos, a andar de bicicleta. Os sonhos agora se faziam muito raros, quase inexistiam. Na madrugada do dia em que comemorariam bodas, Franco sonhou com um altar. A sua frente, o padre. Ao seu lado, padrinhos e madrinhas. A música inicia, o coral se faz presente. A platéia vira para trás, ao fundo da igreja. Selina vem caminhando. Lenta. Soberana. O branco do vestido parece se espalhar por todo o lugar. Pétalas de rosa de variadas tonalidades caem do teto. Franco não lembra de flores descendo do céu em seu casamento, e tampouco se importa. O sonho é ainda mais belo do que foi a realidade. As mulheres choram, os homens assoviam. Todos aplaudem. As aias vêm na frente, fazendo festa. A música dá lugar ao discurso. As alianças reluzem. Os dedos são preenchidos. Ambos se aceitam, até que a morte os separe.

Algumas horas mais tarde, em sua vida acordada, Franco trocou presentes com Selina, comemorando seu aniversário e quebrando uma abstinência de anos. Consumiram champanhe sobre a mesa iluminada pelos candelabros. Ao fim de sua ceia particular, Franco, já bêbado, começou a lembrar da noite do casamento, e recordou com tamanha riqueza de detalhes que Selina emudeceu. E começou a recordar todos aqueles sonhos, um a um, na ordem em que foram vividos. Franco só interrompeu a narração quando Selina começou a chorar. Um choro que nasceu contido e foi se afetando, afetando. Franco perguntou o que houve, meu deus, o que houve? Selina começou a narrar os sonhos, um a um, em ordem cronológica. Franco levou as mãos à cabeça. As lágrimas vieram ligeiro para ele também. Só agora havia percebido. Ela sempre esteve presente. Em todos os sonhos, desde o primeiro, ela sempre esteve lá. Todo aquele tempo. Selina havia sonhado o sonho de Franco.

E as lágrimas que caíram ajudaram a fundir os corpos.

Como um romance impossível entre o Sol e a Lua.

Eclipse ao som de violinos.

Cordas que podem parar o tempo.

Congelando um momento passageiro eterno.

 

* * *

 

Os meses seguintes foram costurados por um romance inabalável. Tudo era novo, mesmo aquilo que já haviam feito milhões de vezes. Estavam renascidos, rebatizados. Vivos novamente. Franco não mais queria dormir. Cada minuto a menos acordado era um minuto a menos com sua amada. A magia florescia deles e ao redor deles. Todos percebiam, era nítido: estavam felizes. Os sonhos cessaram por completo.

O casal continuou fazendo as mesmas coisas com vivacidade por mais sete meses. A estação estava mudando e, aos poucos, o novo começou a ter gosto de reciclado. Custaram a acreditar. As risadas não eram mais tão intensas, nem tão espontâneas. As cobranças e os defeitos voltaram, tímidos. Uma ou outra briga. Os diálogos diminuíram. Junto deles, a magia. Junto dela, seu tempo. “Deixe as folhas caírem”, disse Selina na cozinha. Franco sabia que jamais seria a mesma coisa. Era começo de outono e seu tempo havia acabado. E desta vez, os sonhos não voltaram.

Duas semanas antes de completarem novo aniversário, pediram o divórcio. Selina foi morar no campo. Casou com um fazendeiro. Franco mudou de emprego. Começou a dar aulas. Seu apartamento era coberto por objetos e roupas espalhados pelo assoalho. Feito cacos desorganizados, tal qual sua vida. As estações continuaram mudando. Os anos fugiam, apressados.

Na noite de Natal, época de nascimento, Franco dormiu sozinho em seu apartamento. Na madrugada gélida o cobertor não se fez suficiente. Seu corpo tremia. Os sinos que orquestraram seu sono foram os mesmos que anunciaram o seu presente. Um sonho a mais.

Franco está sentado no banco da praça. O ar que o circunda é cheio de juventude, rejuvenescedor. Ele ouve seu nome. Selina vem em sua direção. Ambos trazem a paixão adolescente no olhar. Franco se assusta com tamanha beleza, Selina nunca esteve tão linda. Ela se aproxima, senta no banco. Franco faz um carinho em seu rosto e a beija. Permanecem a encarar um ao outro, encantados. Ele olha para as mãos entrelaçadas, feito um elo inquebrável.

E só então percebe: estão com noventa anos.