quarta-feira, 11 de maio de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 198



Quarta-feira, 11 de maio de 2016

01:58

Uma nova madrugada. Sou a rainha soberana do meu castelo onde todas dormem. A porta está fechada. Lembrei e agora registro: Sabby estava envolta em uma nuvem de fumaça negra. Ela parecia caminhar pelo corredor de paredes altas de uma das alas daqui. Estava calor. Muita fumaça, muito negro, comecei a me sufocar e ela disse:

Fale mais do incêndio, Maria.

Levantei da cama em um susto, acordei com o coração batendo e batendo. Mas havia silêncio. Como se todo mundo tivesse morrido. Era de madrugada e não pensei em maiores significados para aquilo. Sarah provavelmente diria que o incêndio era um símbolo, esses psicanalistas do mal sempre querendo nos enlouquecer.

Ontem o Garoto Skinner, que se interessa por política, disse que do lado de fora destes muros estão querendo derrubar o governo, fazendo passeata para impedir um golpe de Estado. Não sei, como alguém pode se preocupar com isso quando estamos confinados neste fim de mundo?

Talvez ele também ache que um dia vai sair, e talvez até tenha uma família esperando ele do lado de fora.

Será que eu tenho alguém me esperando?

Será que, se tiver, alguém sabe que estou aqui ou fui abandonada por todos?

Não sei. A escrita sai difícil, quanto mais fico sem escrever esta merda mais difícil fica seguir em frente. Pelo menos ninguém vai ler essas bobagens – então para que se importar? Para que se importar com qualquer coisa quando nem tenho certeza de em que ano estamos. Mas coloquei a data aqui.

Não posso estar tão perdida.

Não.

Sorrio.

Não posso estar tão perdida.

E sei lá por quê, mas Sarah me disse que era só para escrever, captar meus pensamentos em tempo real, pensei naquela historiazinha que jamais chega em lugar nenhum. Pensei em Maria, a mãe. Que vivia sendo espancada por Claudius. Pensei em me matar algumas vezes, mas hoje não. Hoje não, como talvez Claudius tenha dito em algum daqueles grupos em que ele ia, antes de voltar a beber depois de dez anos em abstinência. Hoje não.

Maria, a mãe.

Mamãe linda.

Maria, mãe de Clara.

Maria quis fugir.

Me arrepio quando escrevo isso. A coisa está voltando.

Maria quis fugir com Clara e Jonas para longe de Claudius. Maria deve ter dito, vamos meu amor. Vamos, Clara. Jonas, ande logo. Vamos, vamos. Para onde vamos, mamãe? Não sei, mas vamos embora. Para outro lugar melhor. Vai dar tudo certo, meus amores. Vamos embora. Nós vamos voltar, mãe? Não. Não? Eu não quero voltar. Papai vai nos buscar? Não se a gente for rápido. Papai sabe que a gente vai embora? Vamos logo. Mãe, estou com medo. Vai dar tudo certo, vamos embora. Estou com medo, mãe. Vem comigo, Jonas. Leve sua irmã. Mãe, quero pegar minha boneca. Eu te compro outra, Clara, vamos embora. E meu sapo, mãe? Outro dia a gente volta para buscar, Jonas, agora vamos embora. Vamos embora, merda.

Então Claudius chegou em casa.

Posso quase sentir o cheiro de álcool daqui.

Claudius e Maria começaram a discutir. Claudius levantou a voz, xingou Maria.

Depois empurrou ela.

E então...

E então...

Ó meu deus.

E então...

Começou um incêndio.

02:21