sábado, 27 de setembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 130


27 de setembro de 2014

01:09

Uma nova madrugada começa. O piano volta a me arrepiar. A lembrança de algo que nem sei se existiu ou só existe em minha cabeça – mas se existe em minha cabeça, então existe, é real. Não sei porque escrevo de madrugada, mas ainda sinto que todos – ou todas, porque a maioria das pessoas que habitam este lugar são mulheres – ouvem o piano. Tudo que há para ser dito, para ser vivido nesta vida errante, esta vida que não sei onde começa ou termina, está nas teclas deste piano.

O piano que deve seguir.

Lindo como um corte no pulso.

Feito sonhos que queimaram no incêndio.

A vida que não foi.

Mas talvez pudesse ser.

Talvez ainda possa ser.

Dafne me disse que começou a esboçar uma imagem para uma pintura da história de Clara. Fiquei curiosa, confesso. Jade está de namorado novo. Perguntei se era namorado, ela disse apenas:

Estou feliz.

Para mim bastou. De alguma forma que não consigo explicar, fiquei feliz por ela. Será que estou desenvolvendo afetos? Sarah me disse que todas as nossas relações são baseadas em amor e ódio. Maria, quem diria, é capaz de amar.

Amor, depois de tanto tempo.

Quando sinto isso, não tenho vontade – ou pulsão, nas palavras de Sarah – para inventar horrores de Claudius. Nem de Lara. Nem de abandonos, internações, violências domésticas. O piano é triste, lindo. É tudo o que consigo pensar. Maria, a melhor mãe do mundo. Tocando para Clara, a filha mais linda do mundo.

Tenho vontade de chorar.

Quietinha no meu canto.

Um choro que não precisa ser de dor. Pode ser de vida. A criança quando nasce chora para a vida, pensei agora.

O que será que Dafne pensou em pintar?

Vi Cris hoje. Estava com saudades dela. Quem estará na pintura? Não pode ser eu, suponho, porque não estou na história que estou contando.

Não estou.

Ó, meu deus.

Meus dedos congelam. Não sei mais o que escrever. O piano está tão distante e tão perto. Maria tocando para aquela princesinha. Vejo ela de vestido, talvez para uma festa junina, junto com Jonas. Talvez aquele médico maldito tenha se excitado com o vestido, com aquilo que ele devia ver como uma bonequinha, um brinquedinho para ele satisfazer suas perversões, filho da puta. Mas nesta noite não quero pensar nisso. Apenas sonhar com esta garotinha linda. E sua mãe linda. Por que esta história não pode ser apenas essas duas?

Porque não são apenas essas duas. Queria que fosse, mas a vida não é do jeito que a gente quer, não é mesmo? Em minha mente febril, houve Claudius. Essas coisas vêm e vão, feito pensamentos que a gente quer trancar no porão. Mas eles sempre fogem da jaula.

Às vezes penso em reler algumas das coisas que escrevi aqui. Quem sabe algum dia? Talvez não esteja tão ruim. Mas sei que vai doer. Vai doer mais uma vez. E não quero que doa mais. Então escrevo. Chego mais perto do abismo. Talvez lá onde acho que não existe nada além, que seja o precipício onde tudo acaba, haja uma ponte. Que pode me levar para o outro lado. Para outra vida, onde não existe dor.

E se conseguir chegar lá, talvez possa trazer aquelas duas junto comigo.

01:36

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 129


18 de setembro de 2014

23:49

Você sabe, meninas não contam.

Meninas nunca contam.

Meu espírito parece querer voar para além desta janela madrugada fora, além deste quarto-abrigo. Mas tenho que escrever. Sarah me disse que um pedófilo é do jeito que é pelo jeito como suas pulsões e outras coisas que não entendo foram sendo organizadas dentro dele, desde pequeno. Então ele não sabe que está fazendo mal para o outro? perguntei.

Sabe. Ele sabe que está fazendo mal para o outro. E nisso está o seu prazer.

Suspiro, respiro. Meu espírito ainda vive. A madrugada está começando. Claudius, como outros, é como se tivesse sido criado para fazer o que fazia.

Meu deus.

Meninas nunca contam. Se contassem, ninguém acreditaria. Se contassem, mesmo que muitos anos depois, ainda não acreditariam. Diriam que são falsas memórias. Diriam que isso é passado. Que passou.

Passou porque não foi no de vocês, não é mesmo?

Teria passado para a pequena Clara? Teria passado para outras Claras que estão por aí, quem sabe ao meu lado?

Passou para Maria, a mãe? Claudius que batia em Maria na frente de Clara. Teria o pai de Claudius batido em sua mãe, vó de Clara? Teria o pai de Maria se divertido com ela, e ela nunca contou, e se contou, não acreditaram, e ela apenas passou a desgraça para a geração seguinte? Clara, penso agora, nunca contou a ninguém?

Ou contou e não sei?

Como posso não conseguir inventar uma história? Apenas escrevo. Sarah disse que não era para pensar. Clara, se viveu, teria encontrado um sentido para tudo isso? E Maria? Sou mais perguntas do que respostas. Mas a dor há de passar. Não sei como fazer para parar de sangrar. Por isso escrevo. Não sei mais da família de Claudius, Dr. Vou Me Divertir Com Minha Filhinha.

Minha filhinha linda.

Me arrepio como mal posso descrever. Deve ser difícil criar uma filha, penso agora. Se for menina é mais complicado. Meninas têm mais dificuldade para se defender. Jonas deve ter defendido sua irmã. Mas talvez ter batido nos garotos do colégio não aliviasse a dor de não conseguir defender Clara do maior dos garotos, que habitava a casa: papai. E Marcos, onde entra nisso? Acho que ele defendeu Clara, como talvez já tenha escrito em alguma dessas páginas perdidas nas madrugadas. Perdidas no tempo. Talvez Marcos, além de Lara, a cunhadinha, putinha, soubesse que Clara era sua irmã. Que mamãe tinha dado para o titio e ele tinha uma irmã e um irmão. Não tinha pai, com certeza. Mas tinha uma irmã. Uma irmãzinha linda.

Que talvez ele tivesse jurado defender. Talvez ele tenha morrido para isso.

Os arrepios voltam. Parece que quanto mais adentro essa história sem fim, essa desgraceira infindável, essa merda de história mal escrita, algo acontece em meu corpo. Sarah disse que as pulsões nascem do corpo. Tenho uma pulsão de escrever para sarar, então?

Sarah de sarar, nunca tinha pensado nisso.

Algum sentido Clara e todas as outras hão de encontrar.

Penso que em outras famílias, talvez em muitas das que jogaram minhas colegas de asilo aqui, acontecesse coisas parecidas. Outras Claras por aí. Tentando encontrar um sentido.

Que nem você e eu.

Você sabe. Meninas nunca contam.

00:10

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 128


15 de setembro de 2014

22:43

Não é tão tarde para começar a escrever, mas começo logo antes de mudar de ideia. Meu destino é mudar de ideia, é desistir. Mas se desistir de desistir for uma boa ideia na noite de hoje, então vou escrever. Pensando de novo no piano. Pensando na vida que deve nascer destas frases que escrevo sem programar e só tomo para mim a liberdade de escrever porque sei que ninguém vai ler.

Apesar de que hoje Sabatha sentou ao meu lado no corredor. Reparei como sua pele parece mesmo leite desnatado. Disse a ela que ela tinha a voz bonita. Na verdade, não reparei hoje em sua voz – acho que ficou em minha mente, maldito reino do inconsciente – e no instante seguinte, quando ela sorriu, um tanto envergonhada e talvez agradecida, e disse que costumava ser oradora, sei lá de onde, me arrependi porque suspeitei, temerosa que ela fosse dizer o que de fato disse:

Talvez um dia eu faça uma leitura pública da história que você está escrevendo.

Não sei se sorri, ou se sorri e gelei, ou apenas gelei. Mas não consegui perguntar como ela sabia que eu estava escrevendo uma história. Não pode ser paranoia minha. Alguém me lê escondido, talvez mais de um me leia enquanto durmo, ou quando estou fora do quarto, talvez comendo, ou passeando pelos campos, quem sabe no raro momento em que vou até o riacho.

O piano.

Todos ouvem o piano enquanto escrevo.

Onde vamos chegar com esses personagens entrando e saindo, Dafne, agora Sabatha, sei lá mais quem. Emília, Brownie. Jade. Gente que nem lembro. E aquele homem que odeio. Que demorei a batizar, doutor dos infernos. Maria, ó doce Maria. Mãe de Clara. Linda da mamãe.

De onde estou tirando isso, pelo amor de Deus?

Talvez esses personagens não sejam para se chegar a algum lugar. Talvez seja para sair de algum lugar, sair daqui. Talvez tudo isso seja um delírio desta mente febril. Mas temo em admitir: algumas coisas que escrevo aqui fazem sentido. Talvez não para você, ou talvez só para você, que quem sabe me entendeu antes de eu mesma me entender. Existe um mistério no meio dessas linhas, que Sarah não pode me contar. Talvez eu também não queira saber. Por isso me enrolo para contar, para escrever. Divago, tateio a narrativa. O inconsciente tem suas próprias leis, a narrativa também. O texto me ensina como escrever.

Talvez eu já tenha escrito antes de chegar a este lugar.

Talvez Maria contasse histórias para Clara. Talvez elas brincassem de escrever.

Um trauma dificulta a capacidade de simbolização.

O abismo se aproxima.

Difícil escrever, simbolizar, fazer algo produtivo com a dor que não conseguiu ser e agora quer estar. De onde vêm as palavras que escrevo aqui? Não importa. Elas vêm. E devem seguir.

Minhas costas doem. Falei com Cris hoje. Mais personagens. Acho que ela está se recuperando aos poucos, deixando nascer esse fiozinho de esperança que resisto em encontrar em mim.

Esse fio que há de crescer.

Enquanto eu me mantiver escrevendo, e aquele piano se mantiver tocando. Suas teclas, pensei agora, são a esperança que procuro. Enquanto elas viverem e espalharem sua melodia até o infinito, nós estaremos bem. Eu, Maria e a pequena Clara.

23:03

sábado, 13 de setembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 127


13 de setembro de 2014

00:14

Prometi para Dafne escrever hoje.

De novo ela veio com aquela conversa de fazer pinturas das bobagens que escrevo. Olhei para ela, que parecia mesmo que ia se quebrar, apontando seus dados magros para a parede, desenhando no ar. Talvez ela tenha, em sua loucura, até pensado em me pintar escrevendo sozinha em meu quarto escuro. Pensei que estas paredes são de madeira marrom. Mogno, sei lá. Não são, mas visualizei o quarto de Maria, a Louca Que Escreve Trancada No Quarto, assim.

A madrugada. Saudades, dores, lembranças que não consigo desenhar. De novo, escrevo. Sem saber o que vem pela frente. Apenas seguimos.

Dafne estava conversando com outra garota – sou péssima em descrever – magra e branca, tipo um leite desnatado, com cabelos longos e volumosos, como se estivesse um tapete ou um esquilo grande morto sobre as costas. Acho que o nome dela é Sabatha. Nunca tinha reparado, mas ela tem a voz bonita. Pensei em minha loucura, porque a loucura definitivamente se contagia através do ar, que essa Sabatha podia ler esta história em voz alta. Tipo um sarau.

É claro que nem ela nem ninguém vai ler a história de Clara.

Mas pensei que uma voz bonita poderia colocar um pouco de suavidade em uma história horrível.

Horrível.

O monstro do pântano que sequestrou a princesa do alto da torre do castelo.

Claudius que abusou de Clara.

Claudius que matou a criança.

Que matou a vida.

Me arrepio quando escrevo isso. Choques perpassam meus braços. Ainda não tive tempo para chorar. Claudius deve morrer. Mas não posso programar isso. Apenas devo escrever. Esta história enfadonha a cada noite. Suspiro.

Claudius que batia em Maria. Que se internava.

Ó, meu deus. Como eu.

Não posso deixar de registrar meus pensamentos em tempo real. Sarah, maldita, me colocou neste labirinto e agora escalo estas paredes de gelo. Que queimam.

Existe uma Maria nesta história que estou inventando. Inventando, criando. Não foi baseada na realidade. Não pode ter sido. Se escrevo a partir do meu inconsciente, como supõe Sarah, eu posso ter visto essa história em um recorte de jornal. Posso ter sonhado com isso. Com este pesadelo sem fim.

A história que estou contando é a história de quem, afinal?

Meu deus, como vim parar neste lugar?

Claudius que matou não uma, mas duas vidas.

Suspiro de novo.

Enquanto escrevo, elas vivem. Sei que sim. Elas vivem, ou vivem mais um pouco, ou vivem outra vez. Maria, respirando por tubos. Clara, pequena e doce Clara, também. Lady Clara lutando para viver. Clara que deve ter tentado o suicídio. Sim, ela mexeu no fogão. Um clarão atravessa a escuridão deste quarto. Minhas costas e meus olhos ardem. Clara que deve ter se cortado também.

Cicatrizes.

Sou mais perguntas do que respostas.

Sarah disse que a psicanálise é assim mesmo.

O abismo se aproxima. Um dia meus questionamentos terão fim. Talvez ainda não esteja pronta para isso. Porque dói. Cada palavra que escrevo. Cada passo que dou mais perto do abismo.

Dói mais que um incêndio.

00:40

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 126


8 de setembro de 2014

22:24

Eu não sei o quanto o acidente, ou seja lá o que foi que aconteceu e que me trouxe a este lugar, fez com a minha cabeça, mas sei que as coisas não andam bem. Além de não lembrar, tenho dificuldade em ler, me concentrar nas coisas. Tem uns textos de Sarah sobre amnésia, trauma, descarga emocional, catarse, ab-reacão e uma série de palavras que não entendo. Pelo que, aos poucos, vou decifrando dessa salada toda: acontece um trauma. Que pode ser real ou imaginado, ou os dois. Sentido, de alguma forma, e não pode ser suportado pela consciência. Por isso, a gente esquece.

Ou recalca, se for criança.

Tenho certeza que Sarah está me largando pistas para eu farejar, mas às vezes sinto como se fosse o coelho correndo atrás de uma cenoura pendurada sempre um metro à frente do seu rosto, impossível de alcançar. Não pode ser paranoia desta mente confusa. Eu podia estar lendo, tentando estudar essas coisas intraduzíveis da psicanálise. Estudar é modo de dizer. Na verdade, eu só preciso escrever e confiar que “algo” vai acontecer. De alguma forma, as frases que jamais me programo para escrever vão se juntando de uma forma que ainda não entendo.

Que bom que ninguém vai ler esta merda.

Nunca releio e morreria de vergonha se o fizesse. Maria Envergonhada. Maria Com Nojo.

Maria Com Raiva.

Maria, ó meu deus, Com Medo.

Cada dia que fico sem escrever, a história de Clara vai para algum canto inóspito do meu cérebro. Preciso escrever para me livrar. Essa história não vai me deixar em paz enquanto não terminar de escrever. Essa historinha sem graça. Que deve ter terminado, ou vai terminar, porque nem o tempo da narrativa consigo organizar – eu, péssima escritora – em um acidente.

Um incêndio.

Todos morrem.

Acho que é assim que termina.

Alguém que era para morrer, morre.

Mas alguém que não era para morrer, morre também.

Isso sim geraria um trauma.

Isso sim faria alguém esquecer.

Uma tentativa de suicídio, pensei agora.

Alguém que não deveria morrer, morreu.

Ou vai morrer.

Meu deus, quanto mais tento fugir da teia, mais ela impregna tudo o que faço. O abismo se aproxima.

Talvez eles não morram. Talvez Clara viva. Talvez Maria.

A mãe.

Estas garotas, que nem sei se são ou foram ou virão a ser, garotas. Em minha mente e coração doídos, elas são belas. Talvez em sua dor. Há uma flor em meio ao sofrimento. Um sentido para a dor que deve partir.

Suspiro.

Falei com Cris hoje. Ela está melhor. Jade está solteira. Vi Brownie também. Saudades do cheiro de infância. O tal Aristóteles nunca mais deu notícias – terá ele ido embora para nunca mais voltar? Dafne disse que queria pintar um quadro disso tudo. O que será que ela pintaria hoje? Como pintar as melodias que o piano e sua dança fazem em minha mente?

Pensei agora que Maria podia ter dançado com a pequena Clara. Uma valsa. Uma canção de ninar. Uma melodia triste, mas linda. Ou linda justamente porque triste. Maria dançando com sua filha Clara. Me arrepio toda e sinto vontade de chorar quando escrevo isso. Meu deus, Maria dançando com Clara.

Lindas.

Feito um solo de piano.

Encontrei sua pintura, querida Dafne.

22:42

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 125


1 de setembro de 2014

23:44

O piano volta ao meu quarto. Em minha mente de escritora solitária existe uma alucinação de que todos ouvem este piano cada vez que escrevo. Triste, mas hoje menos triste do que ontem. Ainda dá saudades, contudo.

Hoje, uma dessas personagens que visitam minha narrativa entrou aqui. Enquanto eu estava sentada no corredor, um desses corredores de paredes longas, em meio a muros altos e suas janelas que às vezes me parecem impossíveis de serem transpostas. Impossíveis de que a gente voe até o alto e, feito anjos, espie o que há do lado de fora. Uma dessas garotas puxou papo comigo. Vi de cara que ela era maluca quando começou a falar de poesia comigo. Sei que chamar alguém aqui de louca é como entrar em um leprosário e chamar qualquer um de doente, mas foi isso que vi em seu rosto. Ela tinha rosto de boneca. Não uma boneca de beleza com desespero como Emília, mas uma boneca daquelas que os ventríloquos usam, uma beleza com loucura, e me pareceu ter saído do mundo de Alice. Ela é magrinha e branquinha, de cabelos ondulados e escuros, como algumas dessas outras que se parecem iguais, e talvez sejam mesmo.

Iguais, mas diferentes.

Seu nome é Dafne. Ela sei lá a troco de que santo me disse que pintava. E perguntou desde quando eu escrevia, por que eu escrevia. Gelei. Então todo mundo neste fim de mundo sabe que estou escrevendo trancada nesta cela, e que posso chamar de quarto? Ou um quarto que posso chamar de cela? Ela me disse que tinha algo dentro dela que precisa sair para fora e que então ela deve pintar para que as vozes se calem. E perguntou se eu escrevia pelo mesmo motivo.

Eu disse que não sabia.

Ela perguntou sobre o que era minha história.

Gelei de novo.

Na verdade, não é sobre nada. Nada acontece.

E achei que aquilo encerraria o assunto.

Nada acontece... mas vai acontecer? Porque de repente essa busca é o que faz o leitor continuar indo em frente. Com angústia.

Não soube o que responder.

Sabe, acho que um dia vou fazer uma pintura da sua história.

Então talvez você vire uma personagem hoje à noite.

Nem sei se onde tirei aquilo, mas Sarah me disse que era só para escrever. Mas eu não tinha escrito, tinha falado. Aquilo pulou de mim. Dafne apertou a minha mão.

Combinado, ela disse. Talvez outra hora eu apareça no seu quarto.

Fiquei olhando em seu rosto, um rosto talhado para contar uma história, que bem podia ser um verso, imaginando um ventríloquo fazendo ela voltar para o mundo de Alice. E se tudo isso for um sonho?

Mas não é, pensei.

Metaforicamente, quero entrar no seu quarto, ela disse.

E foi embora. Agora imagine. Alguém fazer uma pintura desta historiazinha incrivelmente mal escrita, em que nada acontece. Mas vai acontecer, pareço ouvir ela dizer. O que mais? Alguém tocando um piano no lançamento do livro?

Começo a pensar que eu estou ficando maluca.

Essas personagens entram e saem, nem sei bem por quê. Jade bateu aqui ontem, disse que estava com saudades de mim. Vi Brownie também, ela estava conversando com outra garota. Branquinha, magrinha, morena. Será uma conspiração? Um exército de zumbis? Dafne, se fosse mesmo pintar esta história – a história que ninguém jamais vai ler –, o que haveria para ser pintado?

Existe uma Maria na história que estou escrevendo.

Esqueci de registrar isto: eu disse para Dafne que existe uma Maria na história que estou escrevendo.

Ela não disse nada do tipo “Maria, como você?”, mas ao escrever isso agora, me deu um leve impulso para chorar. E tive também – neste momento – saudades de Cris. Anda difícil conviver com ela, depois que ela tentou, mais uma vez, se matar. Mas ela não morreu. E me deu saudades dela agora. E por algum motivo me volta a ideia de que talvez alguém aqui, alguém que nem imagino, possa já ter sido importante para mim. Se não nesta vida, na outra.

Uma coisa que lembrei agora. Quando Sarah estava contando a história da psicanálise, ela disse que antes de darem esse nome, quando ainda estavam hipnotizando as histéricas e descobriram que depois elas não se lembravam de nada, descobriram também que os eventos traumáticos eram apenas aparentemente esquecidos. Trauma seguido de amnésia, ou o contrário, mas em algum lugar da vastidão do inconsciente a verdade se ocultava.

Lá onde está a Maria que procuro. A Clara que procuro. O piano que me aguarda.

Estou cansada, mas com uma coisa vou ter que concordar com Dafne: algo irá sim acontecer nesta história.

00:14

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 124


1 de setembro de 2014

Vazios de fim de noite.

Um novo mês começa. Uma nova madrugada.

Um piano que só existe em minha cabeça. Um piano em meu quarto escuro.

Lindo feito uma cicatriz.

Feito saudade.

Feito Clara.

Feito Maria.

De novo não marquei a hora. Agora é meia-noite e 38. Estou enferrujada. Não tenho nada para escrever, mas como sei que ninguém – jamais – vai ler, para que se importar? Apenas tenho que cimentar palavras neste muro e esperar que algo aconteça. Ou não esperar nada de nada, apenas escrever.

Neste momento me pergunto: que estilo de música Maria tocava para Clara? Será que era sempre a mesma música?

Pensei nesses dias, e não me pergunte de onde tirei isso, mas Jonas, o irmão de Clara, tinha um outro nome. Talvez Jonas Michel e talvez ele também não gostasse de seu primeiro nome. Sei que isso não é importante, mas Sarah me disse que Freud dizia que o que não era importante, pelo menos aos olhos do paciente, geralmente era o mais importante. Maldita livre associação. Talvez esse seja o nome da mágica que não entendo e que me fez, eu, que jamais soube uma única frase do que ia escrever antes de juntar as palavras aqui, escrever mais de duzentas páginas – e continuo sem saber o que escrever. Mas escrevo, desbravando aquilo que se esconde dentro de mim, e que foge a cada vez que chego perto e do qual fujo cada vez que A Coisa se aproxima.

Um dia nos encontraremos, eu pressinto.

Até lá vou continuar trancada neste quarto. 

Cicatrizando a mim mesma com estas palavras. 

E com o piano que me faz seguir em frente.

Hoje vi Claudius. Seu fantasma me deu oi e sorriu. Oi, tudo bom?

Mas chega de Claudius por hoje.

Quero apenas sonhar com o piano. Sonhar e ficar por lá, a Terra do Piano Eterno. Onde nada poderá me ferir. Nem a mim. Nem a Clara. Nem a Maria. 

Tenha bons sonhos, garotinha.

Bons sonhos, mãe.

O piano vai continuar. 

E hoje nós vamos estar a salvo.

00:55