terça-feira, 26 de julho de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 201

#ProjetoBorboleta



26 de julho de 2016

21:04

Ontem foi Dia do Escritor. Nem lembrava, foi Cris quem me avisou e deu os parabéns. Tinha pensado em escrever ontem, como sempre sem ter a menor ideia do que ia escrever, como ainda não tenho, mas decidi dormir. O caso é que hoje choveu e venta lá fora. Não sei se foi isso, ou o fato de eu ter caminhado aqui pelo pátio e reparado que as Garotas da Fita Preta e as Garotas Com Borboletas não são tão poucas assim. Acho que depois que entendi o que significam seus sinais comecei a prestar mais atenção nelas.

Acho que todas fazemos parte da imensa Irmandade das Meninas Com Fendas, algumas frequentadoras da ala das Meninas Que Se Cortam, outras – às vezes as mesmas – frequentadoras da ala das Meninas Que Voam Pelos Muros.

Somos anjos, entendi outro dia.

Querendo voltar para casa.

A fita preta e a borboleta são nossas etiquetas de sobreviventes. Sinal de que a vida não tem sido tão colorida assim. Mas sinal também de que somos, afinal, corajosas. Pelo menos por hoje: estamos vivas. E eu, Maria, sei lá por que, quando escrevo estas palavras mal escritas que jamais serão lidas, em meu quarto-cela, talvez alimente a cada vez que me fecho aqui a possibilidade de levar um pouco de cor para elas nesta vida tão preto-e-branco. Mas vá lá, preto-e-branco também tem seu charme. Podemos encontrar um sentido, mesmo que a vida seja preto-e-branco por muito, muito tempo. Podemos, sim. Por que não?

Pelo menos hoje: não voamos pelos muros.

A borboleta de Cris, que eu saiba, já se apagou. Mas pelo menos ela não quis mais voar pelos muros. Das outras, tenho visto pouco. Estariam de férias? Férias do quê? Da vida? Acho que todas nós temos um tipo de loucura que nos faz únicas. Especiais, eu diria, porque hoje choveu e está frio, e isso me anima.

Mas nem todas querem voar pelos muros. Nem todas carregam lâminas escondidas, nem todas usam fita preta ou desenham borboletas, em si ou em cadernos, nas paredes.

Acho que essas que fazem isso, de alguma forma, são as mais especiais.

Então me pergunto, porque tudo deságua nela: algum dia a pequena Clara, se é que cresceu, usou uma fita preta?

Algum dia, Maria, a mãe, desenhou uma borboleta em si?

Tenho vontade de chorar quando escrevo esses nomes, porque tudo o que faço aqui é fugir deles, me esconder de mim mesma sem ser encontrada. Mas eles me chamam. Tipo vozes, que poderiam dizer – como talvez já tenham dito, uma vez Cris disse que já ouviu vozes dizendo isso – se mate. Morra.

Talvez as vozes que ouço hoje digam apenas: escreva sobre nós, Maria. Escreva sobre suas irmãs, suas filhas. Escreva sobre nós, Maria. E faremos uma borboleta com seu nome, uma borboleta linda chamada Maria, e hoje não nos cortaremos, Maria, hoje não voaremos pelos muros.

Tenho vontade de chorar, mas também suspiro, com um quase sorriso de alívio de missão cumprida. Estamos aqui por um motivo, meninas. Vou continuar escrevendo, garotas lindas.

E quero uma borboleta com meu nome.

21:24

sábado, 2 de julho de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 200

#ProjetoBorboleta #ProjetoFitaPreta


2 de julho de 2016

02:23

Estamos descendo pela madrugada, onde sou a Rainha do Castelo, e ninguém para me impedir de escrever, de sangrar, chorar, sorrir, voar, porque são verbos irmãos neste mundo da criação e da loucura, e ninguém vai me impedir. Não agora. Faz quase um mês que não escrevo, e você que me lê sem que eu saiba, você que só existe em minha imaginação de péssima escritora, já sabe: não ia mais escrever nada aqui, e talvez Clara e Maria morressem para sempre, nos confins do meu inconsciente, naufragando sem vestígios, feito um sonho que acabou antes de começar.

Alguém ia sentir falta?

Alguém ia sentir falta de Maria, a louca que escreve trancada no quarto, voando e cortando feito giletes literárias no vazio das madrugadas, igual à poesia?

Giletes.

Acho que elas me fizeram escrever.

Acordei ontem com uma borboleta desenhada em meu braço, e com o dizer: te amo.

Não sei como ela veio parar aqui, mas como não sei nem qual é o meu nome inteiro, nem como vim parar neste lugar, e talvez sim, escreva e escreva e escreva para inventar uma história, que nem história é, e talvez descobrir uma pegada que se evaporou no clarão da memória sobre como vim parar aqui... Uma borboleta não é nenhum terremoto.

Não comentei com ninguém. Caminhei pelo pátio, pelos corredores. Nada. Até que comecei a notar alguns olhares das Garotas da Fita Preta. Enquanto eu passava por algumas garotas, separadas umas das outras, pingadas pelo pátio, com fitas pretas no braço esquerdo, sobreviventes da ala das Meninas Que Voam Pelo Muros, e frequentadoras da ala das Meninas Que Se Cortam, vi que algumas me olhavam e apontavam, discretas, para meus braços. É claro, está frio, e não saí com meus braços de fora, mas puxei um pouco as mangas porque ali pelo meio do dia esquentou um pouco e porque, talvez inconscientemente, sei lá, quisesse que a autora da borboleta se denunciasse. Já sabia do Projeto Fita Preta, mas não entendi essas borboletas – vi que mais garotas tinham borboletas nos braços –, se é que elas tinham algum significado, neste asilo onde nada é o que parece ser.

Até que alguém disse: Projeto Borboleta. O quê? me assustei.

Uma garota com a fita preta, morena, magra, de cabelos lisos, talvez recém saída da adolescência, que eu nunca tinha visto, disse que aquilo era o Projeto Borboleta.

O que é isso? perguntei. Não sei de nada disso, apenas acordei e essa borboleta estava aí.

Ela sorriu e me chamou de anjo.

Anjo é a denominação das Meninas Que Voam Pelos Muros, dos anjos querendo voltar para casa.

Me arrepio quando escrevo isso.

E quase tenho vontade de chorar, mas pode ter sido apenas saudade. Sei que ela me disse:

Sempre que a gente tem vontade de se cortar, desenha uma borboleta no braço. E não pode deixar essa borboleta morrer; a gente tem que cuidar dela, só pode deixar ir embora se sair no banho. Às vezes a gente coloca um nome na borboleta, e oferece para alguém, tipo assim: não me cortei por você.

E ela puxou a manga para eu ver melhor sua borboleta.

Estava escrito: Cris.

Quando escrevo isso, sim: tenho vontade de chorar. Ela me diz que às vezes se cansa de ser forte, de fingir que está tudo bem, e dá vontade de recair, mas que conheceu outra garota que colocou suas borboletas em um cartaz. Para cada dia sem se cortar, uma borboleta.

Tem uma garota que está completando um ano aqui. Então talvez eu também consiga.

Um ano sem de cortar?

Só por hoje, Maria.

Sei lá por que pensei em Claudius.

Como sabe meu nome?

Ela sorriu.

A gente se conhece só no olhar, anjo.

E passou a mão pelo meu rosto. Pegou no meu braço, leu a frase e disse:

Você é importante para alguém, Maria.

E sim, tive vontade de chorar de novo.

Me senti em casa, depois de muito tempo.

Se eu tivesse uma borboleta, feita por mim, que nome ela teria?

Sorrio.

E me arrepio quando penso nisso, e sorrio agradecida.

Uma borboleta.

Linda, a mais linda de todas as borboletas deste lugar. Vou cuidar dela e não, não vou deixar ela morrer. Um dia de cada vez. Uma borboleta linda.

Com o nome de Clara.

02:55