sábado, 29 de março de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 82


17:21

Não ia escrever hoje, como nunca ia escrever, e acabo escrevendo. Não escrevi ontem, e imagino que você não tenha sentido falta. Eu também não. Mas senti hoje. Mais tarde acho que vou jantar com Cris, só nós duas. Estou com saudades dela. Tenho saudades.

De lugares, coisas, pessoas. E mal lembro delas.

Apenas comecei a escrever porque não deixaria de jantar com Cris para ficar escrevendo minhas bobagens, mas hoje tentei ler e, meu deus, como é difícil me concentrar. Se você me acompanha até aqui, mesmo que esse “você” possa ser simplesmente eu me dirigindo a mim mesma, ou – o que é mais provável – alguma dessas pessoas das quais tenho saudades, e talvez quando chegar ao fim disso tudo, quem sabe?, ainda possa encontrar alguém.

Se estiverem vivos.

Talvez algum dia também saiba disso.

(Pausa. Alguém se aproxima. Apenas queria dizer que sonhei ontem com Maria levando Clara pela mão. Clara estava sorrindo. Sim, eu vou escrever sobre essa cena. Mas não agora. Minha escrita acabou por hoje. Talvez mais tarde retome.)

17:28

17:33

Meu peito dói. Não consigo explicar. Talvez tenha sido apenas alguém se aproximando. E quando alguém se aproxima, por algum motivo, meu peito dói. Mas vou escrever e talvez – talvez – a dor vá embora, assim, de mansinho, como quem não quer nada.


Neste momento fico em dúvida sobre me forçar a escrever, como tenho feito praticamente todas as vezes em que fico aqui e tiro essas palavras de nem sei onde. Mas meu peito dói.

Não posso morrer.

Ainda não.

Maria estava caminhando com Clara. Maria levava ela pela mão. Em minha cabeça, elas estavam em um restaurante, e iam de mesa em mesa, talvez chegando, talvez indo. Clara, segurando na mão de Maria, disso tenho certeza: sabia que nada poderia acontecer de mal a ela. E nada de mal poderia acontecer a Maria, que – Clara sabia – era indestrutível. Elas viveriam para sempre. Caminhando naquele corredor de restaurante.

Meu peito volta a doer.

Talvez Clara tenha largado a mão de Maria cedo demais.

17:40

sexta-feira, 28 de março de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 81


Estou com fome, e não vou jantar com Cris hoje. A porta está aberta. Ninguém nos corredores. Decidi escrever, talvez aquilo que escrevo não seja tão ruim, afinal de contas. Mas hoje me ocorreu algo terrível. Sinto fome, então meu corpo não vai chorar. Neste momento.

Talvez depois.

Sarah me disse que a gente tende a repetir os padrões de nossos avós, pais, passamos para nossos filhos, se tivermos algum. Na verdade, ela não disse tudo isso, porque sabe que não lembro de parente nenhum, não lembro de nada. Eu que deduzi. A gente tende a repetir os padrões. A gente passa adiante aquilo que nos foi passado, por mais que a gente odeie, renegue. Que diga que jamais faremos aquilo. E que jamais deixaremos que aconteça o mesmo com nossos filhos.

Então que me ocorreu que...

Pausa para respirar. Mas tenho que ir em frente e escrever isto.

Me ocorreu que talvez Maria, a mãe, também tenha sofrido abuso. Talvez, quem sabe. E arrepios passam pelo meu corpo, e sim: tenho vontade de chorar.

É claro que aquilo pelo qual Maria estava passando era um abuso. Mas pensei que ela pode ter sofrido abuso na infância. Podia ter tido um pai de merda.

Como Clara.

Meu deus, quero tanto terminar esta história. Mas preciso dar um fim pra ela. Preciso saber criar algo que... Eu nem sei mais. Não sei o que escrevo, apenas escrevo. E hoje me ocorreu isso, em minha mente de péssima escritora, que não consegue nem inventar uma historinha: Maria, a mãe, sofreu abuso, talvez em sua infância. Só pode ter sido em sua infância. Mas não consigo visualizar de quem. Um pai, avô? Tio? Talvez ela tenha crescido em uma família parecida com a família na qual estava. Faz sentido. Alguém abusou de Maria, a mãe, e Clara sofreu o que a mãe sofreu.

Até onde vai isso?

Por que você escolheu contar uma história dessas? você me perguntou.

Não escolhi nada. Apenas escrevo.

Talvez o vô de Maria.

Como dói escrever.

E ouço o piano como a me dizer: continue, nós vamos sair do outro lado.

É isso tudo o que quero. Sair do outro lado. Do outro lado daquele branco sem fim, um branco de explosão nuclear. Só quero saber, ou talvez nem isso queira saber, o que restou. Se é que restou. Mas preciso entender melhor meus personagens. E continuo tateando seus dramas, suas esperanças. Sim, alguém ali devia ter esperança. Existe um fim para isso tudo.

Maria Que Ainda Acredita.

Um último sopro de vida. Último.

Ainda assim: sopro de vida.

E vou sonhar com ele hoje à noite.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 80


Eu só quero ficar quietinha, na minha. Pensar nesse piano triste que me assombra de tempos em tempos. 

Mas me conforta.

Lindo como um corte no pulso.

Olho para minhas cicatrizes e não penso em como elas vieram parar ali. Apenas sonho com o piano hoje. Talvez não sonhe amanhã, mas sonho hoje. Estou morrendo de fome, não vi Cris hoje, mas sei que ela não vai jantar comigo. Também não vi Sarah, e nem sei por que estou escrevendo esta maldita história de novo. Na verdade, não estou escrevendo história nenhuma. Escrevo para você, e penso em você, com saudades. Saudades de quem não lembro, saudades de não lembro onde.

Ainda assim, saudades.

Talvez pensar nesse piano me leve até o fim disto. Me leve até Clara. Ouvindo o piano tocado por Maria, e penso de novo na foto que devia haver sobre o piano. Já descrevi, mas preciso escrever de novo, enquanto aqueles acordes perdidos no tempo, aquelas teclas tocadas com amor, que talvez ainda não tivessem a dor que retumba em minha cabeça: Maria tocando para Clara. Clara sorrindo, Maria sorrindo. Um dia elas duas sorriram, lindas que foram. E acho que noite após noite tento encontrar esse sorriso nelas, talvez um sorriso que...

Já foi meu?

Queria escrever que a química em meu cérebro está mudando, queria escrever quem sabe coisas mais positivas. Mas que diferença faz se ninguém vai ler essas bobagens que escrevo? Ninguém vai ler, porque ou vou desistir de escrever esta merda e jogar tudo no lixo, ou vou escrever até o fim, e jogar no lixo igual. Sarah disse que queria ler, depois acho que desistiu. Talvez ela leia isso aqui escondida.

Psicanalistas misteriosos. O que ela está escondendo? Porque não me conta qual o grande segredo por trás dessa bobageira toda?

Porque ela não pode contar, e odeio ela um pouco por causa disso.

Às vezes odeio ela muito.

Hoje foi outro daqueles dias que eu queria explodir esta droga de lugar.

Mas confesso que pensar no piano me dá vontade de chorar. De dor, mas de paz também.

O piano que me conta uma história. A história que nunca consigo escrever. Se Maria tocava o piano, como imagino que tocava, sei que Claudius, o maldito homem alto e moreno de cabelos lisos cujo nome demorei tanto para criar, não gostava. Por quê? Ele tinha ciúmes de Maria?

Maria, tenho vontade de chorar.

Maria que abandonou Clara. Que deixou que acontecesse o que aconteceu com Clara.

Maria era uma boa mãe. Ela não sabia, ou não quis saber, ou teve medo de saber. Medo de Claudius. Lara que apareceu para cuidar de Clara, e acabou cuidando só de Claudius.

Vagabunda.

Maria era uma boa mãe. Ela amava Clara e como mãe, amava Clara mais que tudo. Existe algo de errado nesta história. Sou uma escritora tão, mas tão ruim. Mas vou descobrir o que se esconde por trás daquela foto sobre o piano. Talvez Claudius, maldito, tenha se excitado olhando para a fotografia.

E não com Maria.

Queria chorar agora e acordar amanhã, em outro dia, outro mundo. Talvez seja possível.

Em algum lugar, talvez o piano ainda esteja tocando.

E preciso encontrar esse lugar.

E vou, leve o tempo que for.

sábado, 22 de março de 2014

Piano Para Pequena Clara - Dia 79


Nota: o nome desta história não é “Depois do Nanowrimo” (Nanowrimo, as iniciais de National Novel Writing Month, foi apenas a maratona literária onde escrevi grande parte da história, ano passado). Hoje optei por “Piano Para Pequena Clara”, mas continua sendo a mesma história...

* * * 

De tempos em tempos, ainda ouço o som do piano. Que é triste, mas lindo. Ou talvez lindo justamente porque é triste. E imagino que esta história vai terminar com um acorde grave de piano. Não tinha pensado nisso ontem, por isso é bom escrever todo dia, toda noite, toda hora. Tem um piano nesta história que me acalenta, mas também me enlouquece.

Tenho que pensar mais nesse piano, assim como tenho que pensar mais nos garotos Jonas e Marcos, que pouco participaram desta história até agora. Não importa, Sarah disse que não era para eu planejar nada, apenas escrever, sem pensar em mais nada, como tenho feito desde a primeira frase que escrevi aqui, e confiar que as palavras vão aparecer.

 De onde, se não sou escritora? – perguntei. 


 Apenas escreva, disse ela.

E então lembrei que também tinha uma foto de Clara sobre as costas de Maria, que estava de bruços sobre a grama. As duas estavam rindo, lindas, feito mãe e filha. Maria tocava piano, e Clara gostava de ouvir. Penso que Maria podia tocar para Clara dormir. É uma ideia interessante. Maria que tocava para alegrar, para fazer dormir, para fazer a dor ir embora, e nessa época não sei se a dor era tão grande. Claudius ainda não tinha voltado a beber. Aliás, parece que Claudius nunca existiu nesta história.

Apenas Maria tocando piano para Clara.

Por um segundo, tenho vontade de chorar, mas foi só um segundo que passou por mim feito sopro, e sei que Clara gostava de ouvir Maria. Em minha mente de pretensa criadora, era um piano negro sobre um tapete, e vejo Maria sobre um banco tocando as teclas delicada. Ela sabia tocar mais forte, mas acho que só tocava assim quando estava sozinha. Sim, quando ela estava sozinha, podia fazer o piano chorar, e chorar sozinha. Mas quando Clara estava ao lado, ela só queria passar seu amor de mãe.

Talvez, pensei agora, esta foto que acho tão linda, as duas deitadas, uma sobre a outra, sobre a grama, sorrindo como princesa e rainha donas de seu reino, a vida inteira pela frente, Clara tinha um destino maravilhoso por vir, e Maria tinha certeza que um dia aquela garotinha seria uma grande mulher, ou talvez não uma grande mulher, porque para as mães os filhos não crescem, mas ela seria feliz para sempre e para sempre não cresceria, não sentiria dor - esta foto podia estar em cima do piano, e Maria tocava olhando para ela.

E talvez tenha tocado olhando para ela até o fim.

Depois do Nanowrimo – Dia 78


01:09

Jantei com Cris hoje. Ela é uma ótima companhia. Talvez, se eu gostasse de mulher, namorasse com ela. Mas não gosto de mulher.

Nem de homem.

Não quero falar de sexo agora.

Sonhei com um branco muito branco. Dizem que os esquimós veem vários tons de branco por causa de neve e sei lá mais o quê. Mas o branco que vi foi mais parecido com uma explosão nuclear. Sim, uma explosão.

Talvez esse tenha sido o incêndio que acontece nesta historiazinha que Sarah me incumbiu de escrever, e que noite após noite reluto em escrever. Porque dói escrever esta merda. Mas talvez eu tenha me acostumado com a dor. Por isso escrevo.

Maria Que Escreve Com Dor.

Pensei em Claudius – de vez em quando lembro o nome dele –, a quem sempre me refiro como o homem alto de cabelos lisos e negros, e em como seus vizinhos achavam ele simpático. Imagino como eles também achavam ele um ótimo pai e ótimo marido. Um cidadão exemplar. E imagino que ele era mesmo um ótimo vizinho. Sorria sempre, cumprimentava a todos. Como Sarah disse que não era para pensar, nenhum dia, apenas escrever o que viesse em minha mente, continuo fazendo isso, desde o primeiro dia. Sou uma péssima escritora, mas pelo menos estou cumprindo com meu tema de casa. Sempre sem a menor inspiração, e geralmente sem vontade. Mas estou fazendo o que posso.

Claudius que era tão legal e gostava tanto de todo mundo e gostava tanto das mulheres que não se contentou em ficar com a esposa Maria. Teve que ficar com a cunhada Lara e a filha Clara.

Maldito.

Será que esse branco nuclear foi o fogo que consumiu a todos no fim?

Não sei se todos morrem no fim, mas alguém tenho certeza que morre.

Como você tem certeza, se não programa as cenas de sua história?

Não sei como sei. Só sei que sei.

É o que aparece em minha tela mental. Quero mudar o fim, ainda tenho esperança de que algo surja em minha mente e na última hora eu possa mudar o final. Mas no fundo sei que não posso. Apenas tenho que ser fiel ao que aparece em meu cérebro de escritora iniciante e registrar. É assim que funciona nesta história.

Não quero que Clara morra.

Nem Maria.

Claudius, não sei. Acho que ele merecia morrer.

O que você acha?

Talvez ainda haja uma reviravolta. Talvez ainda haja esperança.

E se houve, por Deus, esse deus que nem sei se acredito, e acho que não acredito, mas para o qual rezo agora, e só agora: se ainda houver esperança, quero encontrar.

01:27

terça-feira, 18 de março de 2014

Depois do Nanowrimo - Dia 77


00:41

“Não vou mentir que sou feliz, porque não sou”.

Ouvi isso de um garoto que frequenta um desses grupos que acontecem aqui. É madrugada e fico melancólica ao pensar e escrever, lembrar de alguma música que me traga dor e paz. Você pode dizer que sou masoquista, mas isso é uma forma simplista de ver as coisas. Imagine a tristeza, ou a dor, que é algo maior, como uma lama. E imagine que preciso melecar meus dedos nessa lama senão não consigo escrever. Aliás, acho que escrevo justamente por isso.

E talvez no fim de tudo consiga acabar com as mãos limpas.

Me condoí com a dor desse garoto. Existem dores piores que a minha, afinal. Sarah de tempos em tempos me convida para ir em um desses grupos. Me identifiquei com ele, e me arrepio.

Como cortes no pulso. Como minhas cicatrizes.

Sarah me convidou para conhecer o grupo de vítimas de incesto. O que eu ia fazer em um grupo desses? perguntei.

 Talvez você tenha algumas ideias a partir do que ouvir lá, já que está escrevendo sobre isso.

Não sei. Algum dia, quem sabe, falei. Se não for antes, talvez quando eu terminar de escrever a história.

Ela sorriu.

 Se não for antes, talvez quando você terminar de escrever, disse ela, feito escuta reflexiva.

E saiu pelo corredor. Tive a impressão de que ela queria falar mais, ou que queria, mas ainda não era hora.

Então, tenho que terminar de escrever esta merda de história. Precisamos saber o que acontece com a pequena Clara. Dizem que pode acontecer, quer dizer, escritores profissionais dizem que às vezes se apaixonam por seus personagens. Não digo que me apaixonei por Clara, mas preciso dela, me importo com ela. Talvez seja algo parecido o que sinto por essa garotinha. A princesa que o Bicho Papão comeu.

Maria, eu, já disse, é meu primeiro nome.

Meu segundo nome, não lembro, nem lembro como era minha vida antes de vir para cá. Mas como você se lembra do seu primeiro nome? você pergunta. Não sei, só sei que nunca gostei dele, e talvez Sarah tenha descoberto isso e me feito escrever a história de Clara para descobrir... o que mesmo?

Já sei que Claudius batia em Maria, a mãe, e que às vezes pedia perdão. Ela acreditava que ele ia mudar. Não sei se foi bem assim, apenas estou escrevendo. Cada noite que fico sem escrever esta história, e toda noite recebo um convite quase irresistível para deixar para amanhã, jogar tudo para cima, a história, minha vida, ou aquilo que sobrou da minha vida.

Aquilo que sobrou da minha vida.

Algo sobrou.

Preciso de você, garotinha. Minha vida depende de você. Mas também, de alguma forma que só agora notei, preciso de Maria também. Maria, sei lá por quê, que neste momento me lembra aquela escritora, Clarice. Li uns trechos de um livro que falava sobre resiliência, e que falava dessa Clarice. Talvez tenha lido sobre as desgraças dela e tenha me inspirado algumas dores da mãe Maria.

Maria, a mãe.

Maria é mãe.

Faria uma oração neste momento. Se ainda acreditasse em alguma coisa.

Mas talvez acredite em Maria. E se acreditar em Maria, talvez acredite em Clara. E talvez, penso, no fim disso tudo, haja esperança para mim.

01:03

sexta-feira, 14 de março de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 76


22:40

Alguns dias se passaram.

Já tinha desistido oficialmente de escrever esta maldita história.

Estava até pronta para jogar tudo fora, e ter a certeza de que ninguém jamais leria esta porcaria. Mas Sarah passou por mim e perguntou: terminou a história de Clara? E tudo que consegui dizer, quando ela me encarou no corredor com essa pergunta, tão assim à queima-roupa, baixinho feito criança com medo se escondendo para não ser encontrada, foi:

- Não.

E ela saiu, sem uma única palavra.

Malditos psicanalistas.

Sempre deixam a gente com a bomba na mão. Na verdade, tiram o pininho da granada e nos pedem para segurar.

Acontece que depois daquilo eu soube que teria que retomar a história de Clara.

De novo, estou com fome, a porta está fechada, talvez não veja Cris hoje. Logo, escrevo. Ou melhor, tenho que escrever.


Mas em minha mente, Clara estava de bico, erguendo os braços para o céu e pulando, como se quisesse voar. Maria, a mãe, estava junto, cuidando dela. Maria cuidava de Clara. Isso deve ter sido antes de tudo acontecer. Em minha mente, Clara estava menorzinha. E ela era tão linda. Uma princesinha. Me arrepio ao escrever e por um segundo tenho vontade de chorar, pensando na princesa que ela foi, que deveria ter continuado a ser, quem sabe ser uma rainha. Rainha Clara. O Reino de Clara.

Suspiro. Me dói escrever de novo. A dor volta, mesmo que eu saiba que, de alguma forma, ela vai me curar. Merda, ela vai me curar sim. A dor vai passar, e ela vai fazer um sentido. O que acontece com Clara no final? Antevi um final não muito amistoso para esta história. Mas ainda tenho esperança. Sim, porra, esperança.

Maria Esperançosa.

Maria Que Se Recusa A Morrer.

Arrepios passam pelos meus braços de escritora de meia tigela – mas que se dane, sou a escritora que precisa chegar até o fim disto tudo. Talvez melhore se eu descrever Clara feliz, pulando em uma parada de ônibus, fazendo graça para Maria, sorrindo.

Meu deus, sorrindo.

Queria mudar o passado que não pode ser mudado. Queria voltar.

Maria, salve Clara.

O homem alto e moreno de cabelos lisos talvez ainda não tivesse voltado a beber. Mas ainda não sei se aquelas coisas aconteceram desde sempre. E suspeito, e tenho medo de que, sim.

Mas elas não duraram para sempre.

Houve um fim.

E vamos chegar ao fim disso, Lady Clara.

Vamos terminar esta história, Pequena Clara.

Eu não morri.

Talvez você também não.

22:56

domingo, 9 de março de 2014

Depois do Nanowrimo - Dia 75

22:23

Para você que me lê e não sei o que você pensa, meu leitor anônimo – ou leitora, não importa. Você que me diz para continuar escrevendo e esquecer o resto. Você que, suspeito, vem me visitar depois que adormeço. Você que de alguma forma me empurra a querer aguentar mais um dia. Para você escrevo hoje. Este alguém-ninguém, o interlocutor para o qual me dirijo todas as noites, e pode ser apenas a voz em minha cabeça, e não tenho como saber se essa voz está dentro ou fora, e honestamente, não interessa.

Maria Que Houve Vozes.

Hoje li um texto que falava sobre jovens que se mutilavam, e no prazer que eles sentiam com isso, meio como se fosse uma droga, o prazer de sangrar, de ver a vida escorrendo aos poucos. Talvez a falta de coragem de cortar tudo de uma vez – ou falta de habilidade, já que a maioria das pessoas que se cortam não entende de anatomia, e se soubesse, e entendesse como o corte deve ser feito (e não vou registrar aqui porque não quero que alguém se mate por minha causa; por favor, mais uma, não), muita gente estaria morta a essa hora.

Jantei com Cris hoje – reparou que não mencionei a fome hoje? Fiquei feliz de ver que ela está bem. Acho que fiquei com saudades, embora não lide bem nem com esse nem com outros sentimentos. De qualquer forma, ela me deu um abraço e um beijo. Não sei como me senti em relação a isso.

Mas lá no fundo eu gostei.

E então paro de escrever e olho para meus próprios braços e algumas cicatrizes.

Me ocorre neste momento, e sei lá de onde tirei isso, ou sei e preferia não saber de onde veio a inspiração, que Clara também se cortava escondido. Ela fazia pequenos cortes com a gilete em seu braço. Não sei se ela sentia prazer ou como ela administrava isso, mas sei que ela queria morrer. Quer dizer, queria, mas talvez não quisesse.

O homem moreno e alto de cabelos negros e lisos que arrepia você cada vez que surge nesta história, talvez não tenha reparado nisso. Ou se reparou, não deu bola. É claro, quando ele tomava banho com ela, tinha coisa mais importante para notar no corpo dela do que cortes em seus braços.

Poderia dizer que bem poderia haver um corte em seu pescoço nesta história, mas estou ficando com sono. Efeito dos remédios, você me pergunta. Não sei, estou sempre alguma coisa, um pouco para baixo, um pouco mais para baixo e, às vezes, um pouco para cima. Mas pensei que gostaria de poder escrever esta história em um horário em que eu não estivesse muito cansada, ou muito triste, ou morrendo de fome.

Provavelmente isso não vai ser possível, até porque não foi possível até agora. Vou me virando como posso. O mundo ideal parece que não faz parte deste lugar e, como você já deve ter notado, não estou em uma colônia de férias. Às vezes penso nesta história, muito de vez em quando, antes de chegar a noite e eu recomeçar a escrever. Penso, esqueço, penso de novo, esqueço de novo. Então, para que me preocupar?

A história vai seguindo em frente, embora eu ache que ela não vai a lugar nenhum. Não importa. Vou jogar tudo fora assim que terminar, e ninguém vai ter lido. Clara vai sumir sem deixar vestígios.

Mas ela já sumiu sem deixar vestígios.

Pelo menos até onde eu saiba.

Preciso descobrir como termina esta história.

E espero não morrer antes que isso aconteça.

22:53

Depois do Nanowrimo – Dia 74


01:56

Estou cansada. Com fome, de novo. E cansada.

Não vi Cris, começo a ficar com medo dela estar doente.

Não, não posso perder mais uma.

Por favor, não.

A aflição acaba de me invadir como um sopro de lava vindo de dentro do vulcão ou um suspirar de um dragão, e não quero neste momento ter que escrever uma nova história para recuperar mais uma.

Por favor, não.

Sempre me pergunto se devo continuar escrevendo, insistindo nesta história horrível, e é mais ou menos como insistir com a vida – que às vezes também pode ser horrível. Hoje soube de um maestro britânico que teve encefalite e perdeu a capacidade de guardar a memória recente. Ele não lembra de nada por mais de trinta segundos. Não lembra da mulher, do filho, da casa onde mora. Desde que a ambulância o levou (“o” levou; veja como estou aprendendo a respeitar os pronomes, rá rá), quase trinta anos atrás, ele não lembra nada.

E lembrar do homem que não lembra de nada, me fez lembrar de mim.

Então minha sina é continuar escrevendo. Insistindo nesta história, dure até onde ela durar. 


E insistir na vida, dure até onde ela durar.

Amanhã penso mais em Clara, em Claudius, quem sabe em Lara, Marcos e Jonas. Talvez pense em coisas que ainda não pensei para formular esta história. É óbvio que essa história não saiu do nada. Você me pergunta por que escolhi contar uma história dessas. Talvez ela seja mais real do que quero supor, ou mesmo admitir. Mas por que contar uma história dessas? Isso ainda não sei, apenas fiz o que Sarah me disse: escreva. Apenas escreva.

Sobre o quê? perguntei várias vezes.

Escreva, apenas escreva. E tente escrever todo dia para não perder o fio da meada.

Tenho conseguido, nessas noites que me convidam a buscar um sentido para tudo isso.

Um sentido.

É tudo que procuro.

02:08

sábado, 8 de março de 2014

Depois do Nanowrimo - Dia 73


"Eu mesma vivo me levantando e caindo de novo e me levantando. Não sei qual é o bem disso, sei que é essa forma confusa de vida que vivo. Uma pessoa que quisesse tomar minha direção seria bem-vinda... Eu nunca sei se quero descansar porque estou realmente cansada, ou se quero descansar para desistir."

Lindo, não? Retirei de um livro de uma escritora chamada Clarice. Achei tão a minha cara. Poderia ter sido escrito por mim, se eu soubesse escrever bonito que nem ela. 

Hoje jantei com Cris. Ela estava de bom humor durante a janta, depois fechou a cara. Ela tem umas alterações de humor piores do que as minhas, quando quer.

Não tenho muito o que escrever hoje, a exemplo da maioria das noites, mas talvez no futuro desenvolva mais as brigas entre Maria e o homem alto de cabelos negros e lisos. Já escrevi que ele batia nela, ainda não sei se ele sempre bateu ou só quando voltou a beber. Cheguei a pensar que ela deve ter chamado a polícia, e ele foi convidado a se retirar da casa, mas provavelmente não aconteceu nada de mais. Gostaria de escrever que ele tomou uma surra, mas minha mente nem tão criativa assim parece não me conduzir a isso. Eu, como criadora desta história, adoraria ver ele pegando fogo - veja, de novo o fogo - mas o mais provável é que a polícia não tenha feito grande coisa. Você sabe, a rede foi construída para pegar os peixes pequenos. Médicos como Claudius transpassam a rede. Gostaria de pensar que Claudius pediu desculpas a Maria, disse que nunca mais ia beber, que as coisas iam ser diferentes a partir daquele dia. Mas o que me parece mais verossímil é ele ter dado uma surra nela. E talvez se divertido com Clara, só para aliviar a tensão.

Vou repetir: ele se divertiu com Clara para aliviar a tensão.

Bateu em Maria, friccionou o corpinho de Clara.

Como Clara aliviava a tensão?

Além de bater nos colegas?

Tenho minhas suspeitas, mas ainda não tenho certeza. 

Talvez, de alguma forma, ela tenha revidado. 

Dizem que o mal que a gente faz volta. Lei do retorno ou algo assim.

Então suspiro.

Espero que não tenham morrido todos para que o revide fosse feito.

Espero que não. 

Espero.  

sexta-feira, 7 de março de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 72


00:04

Às vezes, amanhã é outro dia.

Às vezes, não.

Eu continuo com vontade de explodir este lugar de merda.

E confesso que não me importaria se estivesse aqui junto para ver tudo indo pelos ares.

É claro que pensei em minhas queimaduras agora.

Mas tem outra coisa queimando.

Por dentro.

E dói.

Dói pra cacete.

E no meio de tudo isso, ainda tenho que pescar Clara. No mar de sentimentos revoltos, tenho que achar minha pequena náufraga. Pequena náufraga, daria um nome de poema, e eu escreveria, se soubesse escrever. O caso é que sonhei com o homem moreno e alto de cabelos lisos. Em minha mente de projeto de narradora, nesta história que estou tentando contar, Claudius era um bom vizinho. Ele sorria, cumprimentava a todos. Parava para conversar. O tipo de pessoa que não se imaginaria fazendo as coisas que fazia entre quatro paredes, e não estou falando das paredes que rodeavam Maria. Talvez nem das paredes que rodeavam Lara, que deveria estar cuidando da sobrinha em vez de trepando com o cunhado. Mas as paredes que cercavam Clara, que aprisionavam Clara, ela mesma prisioneira dentro de si, porque ninguém ia acreditar que o Sr. Dr. Claudius esfregava o pipi no popó da filhinha.

Ele sorria para os vizinhos, e todos sorriam de volta. Dr. Claudius.

Sarah disse que existe um troço chamado falsa memória, e imagino que se Clara tivesse dito algo àquela altura, Claudius convenceria a todos que a coitadinha fabricou aquela memória e como, na prática, não dá para comprovar a veracidade, fica o dito pelo não dito, a palavra de uma criança contra a palavra do médico, o que uma fedelhazinha saberia mais que um doutor conceituado?

Ela saberia, mais do que qualquer um, que doeu. Cada dia, cada segundo.

E, de alguma forma, dói até hoje.

Embora ainda não saiba como termina a história de Clara porque preciso continuar escrevendo para desvendar este mistério.

Segundo dia que não janto com Cris. Acho que ela jantou antes de mim hoje. Não digo que fiquei triste, porque hoje não deu tempo de ficar mais triste – o nível subsolo da tristeza. Agora estou melhor. De alguma forma, escrever esta história que ninguém jamais vai ler, até porque vou jogar tudo no lixo assim que eu terminar, me ajuda. Um certo processo de cura perpassa meu espírito, embora não sei o que necessita ser curado.

Além de tudo.

De qualquer forma, o mistério de Clara não é só dela. É meu também. Preciso descobrir como vim parar aqui. Então, mesmo sem vontade, com as costas doendo, às vezes os olhos também, às vezes com fome, preciso continuar escrevendo. A porta voltou a se fechar. Este lugar não vai explodir. Não hoje.

Posso escrever mais amanhã.

Antes que tudo exploda.

00:23

quinta-feira, 6 de março de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 71


Às vezes tenho vontade de explodir este lugar.

Maria Explosiva.

Minhas costas doem. Cris não jantou comigo hoje, e fiquei irritada. Talvez já estivesse irritada, assim como de vez em quando tenho raiva deste lugar, das pessoas daqui. E continuo aqui, isolada e sozinha, dois de meus adjetivos prediletos, condenada a escrever a história de Clara.

Faz dias que não penso em piano, mas hoje me ocorreu que bem poderia ser Maria, a mãe, quem tocasse piano. E o maldito homem moreno e alto de cabelos lisos impediu ela de tocar, talvez por ciúmes. Em minha mente de escritora amadora visualizo ele destruindo o piano de Maria, mas ainda não consegui criar algo para justificar isso. Nem como ele destruiu o piano.

Em minha mente vejo um taco de beisebol.

Não sei se ele já tinha voltado a beber.

Como eu queria não ser tão louca e simplesmente contar uma história simples. Pelo menos com pé e cabeça.

Sarah disse que estou no caminho.

De quê? De quem?

Hoje ainda não deu tempo de desistir – ou melhor, deu, sempre dá, mas ainda não tinha me ocorrido, e por isso escrevo. Claudius destruiu o piano de Maria. Maria tocava piano. Claudius tinha ciúme de Maria. Por quê? Em minha mente nem tão criativa assim, um dos garotos, Marcos ou Jonas, teve algo a ver com isso. Será que Claudius tinha ciúme deles também? Será que um deles já estava meio grandinho e em sua mente doente Claudius pensou que Marcos ou Jonas, ou Marcos e Jonas pudessem ser concorrência para ele, de alguma forma? Será que o todo-poderoso Claudius era inseguro?

Doutor de merda.

Minhas costas doem.

Minha respiração vem pouca.

Preciso continuar escrevendo esta maldita história. Vejo em um flash: Clara em uma tarde no pátio da escola, enquanto outra guria estava apalpando sua genitália. Sarah disse que as crianças fazem jogos e brincadeiras se tocando para descobrirem a própria sexualidade.

Não quero falar de sexo agora.

Em minha mente, a menina estava segurando a mão espalmada sobre a vagina de Clara, e Clara bateu tão forte de volta que a criança caiu no chão. Tia Vera mandou chamar Maria e Claudius, que não foi. Tia Vera perguntou por que Clara andava com o temperamento violento, e disse que aquela não tinha sido a primeira vez em que ela batia em uma coleguinha – no outro dia, mordera um dos garotos.

Está acontecendo alguma coisa? perguntou ela.

Meu deus, Maria, como pôde não ter visto o que acontecia em sua própria casa?

Ou você viu e ficou com medo, com medo de apanhar mais, com medo de que ele fosse embora ou, pior, machucasse Clara ainda mais?

Não, Maria, eu sou mulher. Não estou julgando. Não posso julgar. Você, como todos os outros, são frutos da minha imaginação.

Ou será que esta história tem realmente mais do que quero ver?

Somos mulheres com nossas dores veladas. Vou conhecendo a sua, a de Clara, reencontrando a minha. “Nunca deixe um homem bater em você”, sempre ouço uma porção de outras mulheres falarem.

Vocês não sabem merda nenhuma.

Acham que Clara escolheu passar por isso? E Maria, também?

Vão para o inferno, dondocas, vocês não têm a menor ideia do que Clara passou. Nem Maria. Confesso, julguei Maria, mas a cada noite que tento me conectar com esta história, com essas mulheres e aquele homem maldito, algo dentro de mim grita, e essa pulsão talvez seja aquilo que não me deixe morrer. Hoje não.

Talvez amanhã.

Mas hoje não.

Não vou desistir de você, pequena Clara.

Aguente firme, garotinha.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Depois do Nanowrimo - Dia 70


23:57

Estou com fome.


Sei que já escrevi isso. Já escrevi antes de jantar, e disse que estava com fome. Mas hoje vou dormir sem jantar. Nem eu nem Cris comemos, talvez porque ambas nos amarremos e agora não existe mais comida aqui, pelo menos não hoje. Então vou escrever. Duvido que passe minha fome, nem sei como ela vai lidar com isso, mas provavelmente não vou conseguir dormir agora, e então minha sina continua sendo escrever, e tentar seguir em frente com esta história.

Não sei se é a fome, mas acaba de me ocorrer que Clara tinha distúrbios alimentares. Sim, ela comia e vomitava, e não sei se Maria sabia disso. Talvez pergunte para Sarah o que significa uma criança comer e vomitar, qual o grande sentimento que ela não conseguia digerir e tinha que jogar fora. Talvez Claudius soubesse que ela jogava a comida fora, e talvez tenha batido nela por causa disso. Quando digo que talvez, é porque sou uma escritora muito insegura, não tenho certeza de nada. Mas se o inconsciente, por algum motivo, é o verdadeiro ghost writer desta história, é porque isso que chamo de talvez aconteceu com certeza.

Aconteceu na minha ficção.

É só uma historiazinha que estou tentando criar, não é?

Mas se for, de onde vêm as imagens criadas pelos escritores? De onde tirei esta história e por que afinal insisto em contar uma história dessas?

Não importa, o que importa é continuar escrevendo. Clara tinha distúrbios alimentares, e minha fome despertou essa imagem: a menina que comia, ou não comia, e logo em seguida vomitava. E tentava esconder o vômito, ia no banheiro, ninguém imaginava que as necessidades básicas dela eram outras. Como Maria não percebeu, a filha comendo e comendo, e tão magrinha? É porque às vezes ela não comia. Clara não queria almoçar, não queria jantar. E como Claudius forçava ela a fazer o que não queria, forçava a comer, forçava a ser comida mais tarde, e ninguém deve ter suspeitado que as coisas estavam interligadas. Afinal, Claudius, o doutor, deveria entender melhor do que ninguém de saúde. E se ele não falava nada, ninguém falava nada.

Malditos. Ninguém falava nada.

Sarah me explicou que existem segredos entre-famílias, nas famílias em que acontecem abusos entre si. Existe um pacto de ninguém falar nada.

E ninguém fala nada.

Sei que minha fome continua. Penso em Cris, mas também penso em Clara. A fome de Clara. A raiva de Clara, a dor de Clara.

Ninguém falava nada, e se ela tivesse falado alguma coisa, não iam acreditar.

Afinal: era apenas uma criança.

Deus do céu, era apenas uma criança.

O que foi que fizeram com ela?

A fome vai aos poucos sendo substituída pela dor em meu espírito. Por um segundo, tive vontade de chorar, e foi como um espírito encostando em mim, me soprando sua dor, e então indo embora.

Vou dormir com fome hoje. Mas amanhã posso comer mais cedo, e a fome será coisa do passado.

Só não sei se Clara teve um dia a mais para isso.

00:19

terça-feira, 4 de março de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 69


Estou cansada.

Mas já estive cansada antes, e escrevi.

Tive uma ideia muito legal hoje, enquanto tirei um cochilo de tarde. Não anotei, esqueci.

Você sabe, não é a primeira vez que isso acontece. E imagino que não vá ser a última.

O mais difícil já foi: comecei a escrever. Agora é só seguir. Maria Em Busca De Clara. Um capítulo a mais, um metro a mais. Vou escrevendo, assim, sem vontade nem ânimo, mas quem sabe apareça alguma coisa antes de eu desabar de sono. E desistir, meu verbo preferido.

Cris anda meio doente. Ela jantou rápido e foi para o quarto dela, ler. Ela diz para eu ler mais, que ler ajuda a escrever melhor. Mas se eu for ler, não vou escrever. Ou talvez seja apenas uma questão de organizar melhor meu tempo – tempo nada, só tenho que colocar as ideias no lugar. Cris é quietinha, acho que por isso a gente se dá bem. Ela fala pouco. Não sei como ela lida com a falta de Faele, que não veio mais ver ela aqui. Também não sei como lido com as minhas faltas, já que ninguém veio me ver aqui, e se você perguntar quem eu queria que viesse, também não sei.

Sinto faltas, mas não lembro do que a vida era antes de eu vir para cá.

Só sei que meu destino é continuar escrevendo. E o destino de Clara? De alguma forma que ainda não consigo entender, nossas histórias estão entrelaçadas. Ela depende de mim, mas eu também preciso dela para ficar viva. Temos uma, como é a palavra? Simbiose.

Talvez contar esta história seja o que me deixe viva a cada noite, e lá no fundo não sei se eu mesma não vou morrer quando tudo terminar. Será que é por isso que tenho medo de escrever? Não ia escrever “medo”, mas confesso que foi a exata palavra que pensei, e Sarah disse que eu deveria escrever exatamente o que pensasse, e não pensar sobre o que eu estava pensando. Apenas escrever, e confiar que os pontinhos vão se ligar. Na verdade, ela não falou essa última parte, mas eu acredito – embora, agora confissão assumida, eu tenha medo de – que os pontinhos vão se ligar. Claudius, Maria, Jonas, Marcos, Lara. E Clara. Lara e Clara, percebi agora, são nomes parecidos. Será que Clara é filha de Lara? Bem, podia ser apenas uma homenagem à tia, irmã da mãe – mas bem poderia ser sua mãe, pois papai estava dormindo com a titia. A titia mais nova e bonita. Papai dormia com a titia gostosinha enquanto mamãe estava doente sobre uma cama. Em depressão, em casa ou no hospital.

Mas papai não se conteve com a titia.

Também quis a filhinha.

E talvez tenha querido o filhinho, talvez em algum banho, isso ainda não sei. Tenho que continuar escrevendo. Preciso saber o que aconteceu com Clara, mas também preciso saber o que aconteceu com Claudius. Claudius e Clara. Ele era mesmo pai dela, e não padrasto como suspeitei. Em minha próxima encarnação quero vir como uma escritora competente. Não seria tão mais simples a história já estar pronta em minha cabeça e eu apenas escrever, do começo ao fim?

Claro que sim.

Mas aí não descobriria como vim parar neste lugar.

Talvez eu já saiba, assim como já saiba como termina esta história.

Falta apenas coragem para olhar para tudo isso e encarar as navalhas que me abriram ao meio. E buscar a origem de como essas marcas de queimadura vieram parar em meu corpo.

domingo, 2 de março de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 68


22:43

Lembrei que existe um livro chamado Claudius, o Imperador. Tem uma pequena biblioteca aqui, e lembrei da capa preta do livro, sobretudo do nome Claudius. Devo eu chamar o misterioso, ou assim você se refere a ele, homem alto e moreno de cabelos lisos de Claudius? Bem, personagens precisam de nomes, e se esse nome me apareceu, partindo do princípio de que estou seguindo o mandamento psicanalítico de caminhar pela estrada de migalhas de pão deixadas como guia pelo inconsciente, deve ser por algum motivo.

Pelo pouco que li sobre dicas para escrever melhor, lembro que aconselharam: escreva frases curtas. Mas não sei escrever. Apenas escrevo. E se elas vão se alongando é porque vou pensando e escrevendo, e meu pensamento não para enquanto a história vai escrevendo a si mesma. Por isso frases maiores. Fluxo de consciência? Não sei nada disso. Aliás, não sei nada de nada. Sou a Maria Que Não Sabe De Nada.

Maria Que Esqueceu Sua Própria História.

Por isso escrevo.

Talvez você já tenha entendido isso, e hesito em pensar sobre, mas a verdade é que estou tentando resgatar a mim mesma. Mas para isso tenho que contar a história de Clara até o fim. Imagino como termina a história daquela família, como termina a história de Claudius – vou adotar esse nome, pelo menos por enquanto – e da pequena Clara. Ainda precisamos saber de Maria, a mãe, e de Lara, a irmã, tia de Clara. Os meninos, Jonas e Marcos. Tenho que pensar mais sobre eles. Jonas e Marcos eram primos, mas podiam ser meio irmãos. Provavelmente eram, já que Claudius dormia com Maria e, por baixo do pano, com Lara.

E, não contente com isso, dormia com Clara.

Homem alto e moreno de cabelos lisos, maldito seja.

Houve um incêndio? Eu acho que sim, mas ainda tenho dúvidas de como começou.

Mentira, eu já sei o que aconteceu, mas estou tentando mudar os rumos da história.

Será possível?

Talvez seja inconsciente pensar em um incêndio porque eu mesma tenho marcas de queimaduras nos braços.

Tenho várias marcas. Algumas visíveis.

Outras não.

E temo em pensar que essas últimas são as que mais doem.

Daqui a pouco vou jantar com Cris. Estava com saudades dela. Não posso dizer, de maneira nenhuma – ou quase nenhuma – que estou seca de sentimentos. Gosto da Cris. Acho que ela gosta de mim também. Não sei se ela alimenta algum sentimento a mais. Como eu disse, e continuo dizendo: não quero falar de sexo agora. Apenas escrevo, ainda sem saber no que vai dar. Mas me conforta um pouco saber que você está aí. E que Clara está viva mais um dia. Porra, eu também estou viva mais um dia. Nem sempre isso é bom.

Mas estou viva.

Então decidi viver hoje.

Portanto devo continuar escrevendo.

Claudius, que era médico.

Li uma reportagem sobre um médico que se matou quando tornaram público que ele abusava da própria filha.

Coitadinho.

Espero que ele esteja queimando no inferno.

Foi isso o que aconteceu com Claudius?

Achei que você sabia do segredo desta história, mas ou você não sabe, ou definitivamente não vai me contar. Sarah não pode me dizer. Esses psicanalistas não dizem o que só eles veem em nós, a menos que a gente veja antes, ou veja também. Não entendo nada de psicanálise, mas talvez Sarah saiba o que faz.

No fim tudo isso vai fazer sentido. Tudo isso.

Mas preciso de você. Preciso de Clara. Preciso de Jonas também.

Aliás, neste momento me deu saudades do Jonas, não o personagem da história, mas o meu irmão. Que, confesso, em minha mente são meio parecidos. Não importa. Confio que algum dia, talvez quando eu terminar de escrever esta história esdrúxula, os pontinhos vão se encaixar.

Até lá, vou estar esperando.


23:06

sábado, 1 de março de 2014

Depois do Nanowrimo – Dia 67


Acordei hoje e fui ler mais um pouco desses livros que falam sobre a teoria literária, talvez para deixar meu texto menos pobrinho e, também não sei a troco de que santo, terminar de escrever esta história. Parece que a escrita me chama, e por algum motivo extraterrestre e, de novo, sem ter a menor noção do que vou escrever em seguida, escrevo agora.

O caso é que descobri que Claudius, um nome que já pensei em atribuir ao homem alto e moreno de cabelos lisos muito tempo atrás, e também não sei explicar porque lembro disso se não lembro o que escrevi anteontem, era o nome do padrasto de Hamlet.

Você já leu Hamlet?

Sabe mais sobre Claudius?

E agora, devo chamar o homem moreno e alto de cabelos lisos, pai de Clara, por Claudius? E se ele não for pai, mas padrasto de Clara? Maria Detetive Que Vai Seguindo As Pegadas Que O Tempo Quis Apagar. Eu li Hamlet, muito tempo atrás. Por que Claudius apareceu, ou melhor, reapareceu em minha mente?

De qualquer forma, agora é comecinho de tarde. Um novo mês tem início hoje. Estou muito perdida em uma porção de coisas, mas sei que um novo mês está começando hoje, e a tarde está começando. A porta está aberta e aqui faz silêncio, como depois de uma festa em que todos estão de ressaca – ou no dia seguinte a todos terem morrido.

É começo de tarde. Em minhas buscas por encontrar uma história, e acho que foi mais ou menos assim que começou essa não-história, cogitei que do lado de fora da janela ao lado do lugar de onde escrevo existe uma pracinha. E que algo aconteceu nessa pracinha. Não pude ver esse lugar porque geralmente escrevo de noite, mas acho que o homem moreno de cabelos lisos, bem, Claudius, por enquanto, brincava com Clara. Quer dizer, ele ficava apalpando Clara. Talvez um pouco mais do que se esperaria que um pai fizesse, ou de uma forma, digamos, carinhosa demais – aquilo não era carinho, pensei agora.

Ele estava tocando nela como se tocasse uma boneca inflável.

E Lara estava junto na praça.

Talvez Maria, a mãe, estivesse. Talvez não estivessem juntas, talvez fosse a época em que Maria estava internada no hospital e sua irmã Lara tivesse ido passar uns tempos na casa de Maria para ajudar a cuidar das crianças.

Ela ter dormido com o cunhado foi bônus, suponho.

Mas acho que conforme vou escrevendo algumas coisas vão voltando. Não posso ter esquecido tudo. Alguma coisa deve ter ficado em minha memória. E se consigo me lembrar desta historiazinha que eu mesma inventei, talvez quando terminar de contar lembre como vim parar neste lugar. Acho que é isso o que Sarah espera, por isso ela me olha quando passa pelo corredor, e às vezes pergunta, às vezes não pergunta, mas sempre quer saber: como vai a história de Clara?

Como termina a história de Clara?

A foto da pequena Clara sobre as costas de Maria, debruçada na grama, uma foto que incluí nessa história, confesso, alegrou meu coração. Talvez nem sempre seja fácil alegrar meu coração – e imagino que você já tenha percebido isso há tempos – mas essa foto conseguiu a façanha. Uma foto que eu mesma inventei, suponho, para a história. Mas a história que é ditada pelo meu inconsciente, porque – repito – não sei o que vou escrever. Apenas escrevo. E Sarah me disse que era assim mesmo que é para fazer. Não pense, escreva. A história de Clara vai se escrever por si só. Mas você precisa escrever. Precisa começar.

Esses psicanalistas e seus mistérios.

Não importa. Importa é a foto que surgiu na história. Clara e Maria sorrindo em um dia de sol, as duas deitadas, uma sobre a outra, sobre o imenso tapete de grama, sob o teto de árvores.

As duas sorrindo.

Agora posso continuar escrevendo essa história.

Ou posso morrer feliz.

Amanhã eu conto o que decidi fazer primeiro.