sábado, 30 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 30


19:35

Logo mais vai ser meia-noite.

A meia-noite o relógio vai tocar, e acredito que pela última vez.

Falta pouco agora.

Será que consigo terminar esta historinha antes disso?

Sim, eu também duvido. Talvez me mate antes, seria um final interessante. A história não foi concluída porque a autora se matou. Não muito original, mas como dizem que nada é original, acho que não tem tanto problema. Embora ache que se matar é uma desculpa para não continuar escrevendo. Imagina, escrever até depois de morta. E teria que escolher um médium bem bacana para eu ditar e ele concluir o que não tive coragem, ou tempo, ou perseverança para concluir. Concluí a vida, não a história.

Talvez um dia, especialmente se não decidir sair deste quarto antes da meia-noite e me matar hoje, eu conte a você por que todas essas brincadeiras em torno do suicídio.

A gente brinca para não olhar para dentro – ou talvez brincar seja realmente a única forma de olhar para dentro, e não se machucar. As histórias mudam, mas elas continuam histórias. Precisamos delas. Ao longo dos últimos trinta dias tenho escrito para você religiosamente todas as noites. Não sei se você ainda está aí, se realmente esteve algum dia. Mas eu preciso escrever. Mesmo que me mate, a história ainda não terminou.

Não, não consegui criar o nome do homem moreno, e já deveria ter pensado em um nome, qualquer um, inclusive um nome bobo. Deve haver um motivo para passar quase um mês pensando em um simples personagem, fruto – ou assim espero – da minha imaginação. Claro que há, mas ainda não descobri. Descobri Clara, a primeira. Depois veio Maria. Escrevi esses nomes algumas vezes ao longo das últimas semanas, e – você sabe – algumas vezes tive vontade de chorar. Algumas vezes chorei. As pessoas do lado de fora desta porta não vêm bisbilhotar o que faço aqui, e existe a possibilidade de que Sarah esteja monitorando tudo o que escrevo, mas prefiro pensar que isso é apenas Teoria da Conspiração.

De novo começo a me cansar.

Não sou mais uma garotinha.

Será que fui algum dia?

Eu não lembro. Você sabe. E deve lembrar melhor do que eu o que está escrito aí acima, ali atrás. Não importa. Quero seguir em frente, e a melhor maneira de seguir em frente é escrevendo. Chegamos ao fim do mês, amanhã é outro dia, já dizia Scarlett, e não sei o que vai acontecer. Será que descobrirei o nome desse maldito homem moreno?

Batem na porta.

Paro de escrever para ver quem é.

O mundo lá fora não vai parar para eu poder continuar escrevendo. Nunca. Antes fosse, mas não vai acontecer.

Estou irritada. Não deveria ter parado de escrever para abrir a porta.

Sim, existem coisas acontecendo aqui enquanto escrevo, ou tento escrever, e você me lê. Ou tenta me ler.

Como odeio falta de privacidade.

Talvez devesse jogar uma bomba neste lugar.

Mas não quero outro incêndio.

Hoje, não.

Estou começando a ficar com sono.

Serão os remédios?

Pensei mesmo que hoje poderia explodir esta porcaria.

Poderia mesmo.

Seria um final e tanto.

Suspiro.

Não vou conseguir terminar esta maldita história hoje.

Não posso morrer ainda, mesmo que o relógio toque, e ele vai tocar.

O mistério de Clara vai me deixar viva por mais um dia.

19:58

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 29


23:18

Hoje já jantei.

Sim, eu também preciso comer, nem só de escritos vive a literatura.

Aos poucos vou contando o que existe aqui, além disso que escrevo. As pessoas do outro lado da porta, aquelas que se vestem sempre muito parecidas. Aos poucos vou contando aquilo que não quero contar, aquilo que não consigo lembrar. Aquilo para onde me recuso a olhar.

Outro dia falo sobre o acidente que me trouxe para cá.

Até onde eu lembro, claro, e não lembro de muito.

Por isso – você sabe – escrevo.

Sonhei com o homem moreno, magro e alto cujo nome, por algum motivo que ainda não sei, não consigo lembrar, ou não consigo criar, pois ainda penso que ele é fruto da minha imaginação, que estou todo esse tempo apenas tentando inventar uma historinha. De onde vêm as ideias, é o que sempre perguntam, não para mim, claro, mas para um escritor de verdade. Se ele for realmente um escritor sério vai dizer a única resposta realmente honesta que ele pode dar: não sei. Assim como não sei de onde tirei Clara, Maria e Lara, embora Sarah insista nessa história de inconsciente e que tudo aquilo que crio deve ter um pezinho em uma realidade distante, algo que não consigo mais pegar, mas escrevendo e escrevendo talvez descubra alguma coisa.

Continuo sem ter a menor ideia do que vou escrever segundos antes de sentar aqui. E não apenas esqueci da noite anterior; também esqueci como vim parar aqui – aqui nesta sala eu sei, mas me refiro ao antes.

Antes do acidente.

Meus braços cansam de novo. Começo a suspeitar que vou definitivamente falar para o vento, escrever para ninguém ler, embora ainda alimente a esperança infantil de que o príncipe venha salvar a princesa presa no alto da torre.

Infantil, eu disse?

Tem alguma coisa a ver com o passado.

Clara sabe a resposta.

Preciso encontrar essa garotinha.

Preciso encontrar ela antes que o homem moreno a encontre.

Eu sonhei que ele estava passando pelo corredor. Estava com uma cara de cansado. E acima de tudo, ele estava com uma cara de mau.

Como o Bicho Papão.

Como o Lobo Mau.

Mau, porque ia fazer mal para uma criança.

De novo.

Preciso encontrar Clara.

Preciso encontrar essa garotinha, esse anjo cuja inocência escorreu pelo ralo do chuveiro.

Meu deus, água junto com sêmen.

Preciso encontrar Clara.

Antes que seja tarde.

23:33

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 28


22:46

Um dia talvez leia o que escrevi aqui nas noites anteriores.

Ainda não é hora.

Sim, acho que Sarah sabe porque nunca lembro o nome do homem moreno de cabelos lisos. Disse lembro? Quis dizer, invento. Lembrar, inventar, são todos muito parecidos. Mas acho que Sarah sabe porque não consigo criar, então, o nome do cara magro de cabelos lisos negros. O médico de reputação. Tanta que talvez – talvez, ainda não sei – encobrissem o que ele fazia entre as paredes daquela casa. Será que mais gente sabia? Será que era meio como um pacto de uma família conivente?

Sim, Maria é meu primeiro nome, e não gosto do meu primeiro nome. Acho que faz parte dessa espécie de terapia pela qual estou passando escrever meu nome, meio que para retomar minha identidade. Como sempre friso aqui, lembro muito pouco do que aconteceu ontem, e menos ainda do que aconteceu antes de eu vim parar neste lugar. Se é tudo fruto da minha imaginação? Bem, não posso responder isso. Para mim é tudo real, e se é real para mim, então é real para o mundo.

Sarah sabe mais do que ela me conta, mas ela não pode me dizer as coisas. Acho que espera que eu chegue por mim mesma às minhas conclusões. Por isso mesmo, esses psicanalistas me irritam. Se ela tem o poder de acabar com essa tortura, por que não me conta tudo de uma vez? Acha o quê, que eu não vou conseguir suportar?

Pensando bem, talvez seja isso.

Talvez tenha acontecido algo tão terrível que bloqueou minha memória.

Mas então estou condenada a não lembrar?

Escrevo para lembrar. E preciso concluir esta história sem pé nem cabeça, porque acho que no fim disso tudo está a resposta daquilo que, vá lá, talvez eu não queira enxergar.

Não sei como esses escritores conseguem escrever todos os dias. Às vezes é incrivelmente chato, vai chegando a noite e penso: ai, tenho que escrever hoje de novo.

Mas às vezes incrivelmente dói e penso, mesmo que não saiba que penso, que escolha sem saber que estou escolhendo: ai, hoje vai doer de novo.

Você falou em incêndios em armazéns e abusos, procurar em jornais, ou algo assim. Havia um armazém e tenho quase certeza que houve um incêndio, mas acho que não foi no armazém.

Neste momento me pergunto: estou falando da história que estou tentando criar ou da minha vida?

Por algum motivo que ainda não posso entender, e nem tenho certeza se existe, Clara tem as respostas. Sim, a pequena Clara tem as respostas. Mas como chego até ela? Escrevendo, suponho. É assim que chego até você, e se você ainda está aí continuaremos vivos por mais algum tempo. O fim está próximo. Mas ainda não sei o quão próximo ele está. Talvez um pouco, talvez muito. Quando ele chegar, saberemos. Até lá, talvez apareça o nome desse cara que mal consigo ver, o nome do outro garoto que havia na casa (lembra que tinha outro garoto? Irmão de Clara, talvez?).

É incrivelmente chato, dolorido, mas acima de tudo, incrivelmente difícil escrever.

Talvez porque no fundo eu não queira chegar ao fim disso, por mais que diga que sim, e cada vez que estou chegando perto, dou um jeito de pegar um desvio. Inclusive de desviar você, porque me desviando, desvio você junto. As pessoas de fora deste quarto são incrivelmente – reparou como estou usando esse advérbio incrivelmente? – iguais. Mas não quero falar desse pessoal ainda. Eles não rendem literatura. Pelo menos, por enquanto. De novo estou cansada e sem ideias. Com um pouco de fome. Sem sono, mas com fome.

E Lara? E Clara? Qual é a relação das duas, se é que elas têm, ou tinham, relação? Maldita história. Talvez deva desistir de toda essa bobageira. Suspiro. Mas se eu desistir, pensei agora, talvez fique presa aqui dentro.

O resto da vida.

Desta vida que me sobrou.

23:09

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 27


Pensei que fosse Lana, mas é Lara.

Tive que reler o que escrevi ontem para lembrar o nome da irmã.

Mas como, você pergunta, se eu disse que não lembro das coisas que escrevi na noite anterior?

Não lembro mesmo, mas estou pensando em fazer algumas anotações. Talvez um bloquinho ou uma agenda. Não lembro de nada, nisso não menti. Não que tenha mentido em outras coisas, mas suspeito que existam verdades, especialmente verdades do meu passado, o passado que foi antes de eu chegar aqui e começar a escrever esta historinha que me deram como missão criar para resgatar o que foi perdido, para as quais ainda não estou preparada.

Ou seja, continuo escrevendo para lembrar. Talvez, segundo o que imagino que Sarah pense, existam símbolos nesta história que estou criando que vêm do meu inconsciente, aliás, tudo vem do inconsciente, segundo Sigmund Sarah, e se eu conseguir juntar as pistas talvez me lembre de como vim parar aqui. Às vezes quero saber. Geralmente, não. Dói lembrar, dói escrever e dói escrever porque dói lembrar.

Você me disse que queria uma história. Talvez você tenha encomendado essa de mim, e essa é mais uma das coisas que não lembro. Não estou brincando. Realmente não lembro quase nada do que vivi antes de chegar a este quarto.

Tem coisas que sei, mas talvez ainda não seja hora de falar porque isso não tem a ver com a história, como as outras pessoas com as quais convivo e que vivem fora deste quarto, e que vivem alheias a mim enquanto fico enfurnada aqui, entocada feito alguém procurando seu cantinho na imensidão da formigueira.

Mas saiba que a maioria das pessoas de fora deste quarto usa roupas bem parecidas.

Penso no piano, mas não estou ouvindo suas teclas hoje. Penso no homem alto e moreno de cabelos lisos que está destruindo aquela família. Se você, meu interlocutor imaginário, que eu já achei que fosse meu irmão Jonas, embora eu nem lembre de ter um irmão com esse nome, sabe das coisas, responda: por que não consigo inventar um nome para esse cara? É só um nome, colocar um nome fictício em alguém fictício, não pode ser tão difícil. Veja, já temos a pequena Clara, temos Maria, temos um garoto cujo nome também não pensei ainda, e agora temos a irmã Lara.

Onde eles se cruzam? Por que afinal Maria ficou internada no hospital? Tinha pensado em depressão pós-parto, mas como disse que Clara já estava maiorzinha, não pode ser isso. Pode ter sido internada por depressão, sim, mas por que ela entrou em depressão? Talvez quando souber isso vou saber outras coisas. Imagine, ela deve ter tido algum motivo forte para entrar em depressão. Algo que aconteceu em sua casa? Algo como a ver com esse maldito moreno de cabelos lisos?

Provavelmente, mas não consigo tatear o quê. Algo que aconteceu na pracinha? Ou no armazém, que no filtro da minha mente estava sempre fechado? Talvez ele estivesse mesmo meio abandonado, mas é provável que algo aconteceu lá. Seria isso o que levou Maria a depressão? Mas se tem a ver com aquele homem, considerando que ele é médico, ele não ia se expor assim, publicamente.

A menos que não tenha sido ali que ocorreu.

Lara sabia?

Ela estava envolvida?

No quê, você me pergunta.

Quando souber isso, estaremos mais perto do fim. E vejo o relógio, que voltou a bater. Sim, estamos próximos do fim. O quão próximos? Próximos. Mas preciso que você fique aí até o fim.

Senão ambos morremos.

E ainda não está na hora de morrermos.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 26


Você me pergunta se passo os dias esperando a noite chegar para poder escrever. Se não saio daqui nunca. Como eu disse antes, por que você pergunta coisas que não posso (ou não quero) responder? E que diferença isso faz agora? Tudo o que você precisa saber é que estou aqui agora, e se você me lê, quero crer que está aí também. A minha história não interessa. Sim, escrevo para lembrar, mas neste momento não quero olhar para dentro, nem contar o que passou, o que passa. Você quer ver o espetáculo, não quer saber dos bastidores.

Ou estou errada?

De qualquer forma, eu queria contar sobre a visão que tive ontem, de madrugada. Ou sonho, ou voz, nem sei mais, mas tem uma nova personagem nesta história. Nem tão nova, ela já estava aqui. Apenas não tinha sido batizada ainda. Enquanto escrevo meu corpo volta a pesar, não dormi direito semana passada. Digo, noite passada. Droga, já estou variando por causa do sono. Será que tomei alguma medicação? Uma medicação errada, uma medicação a mais.

Quer mesmo que eu continue com isto?

Posso parar por aqui se você já estiver com enfado de me ler. Talvez esteja.

Mas se continuar por aí, sou obrigada a escrever.

Vamos lá. Começa assim:

Lara.

O nome dela é Lara.

Nunca falei esse nome porque não tinha inventado. Ou lembrado, se você acha que esta história é mais do que realmente digo. Talvez mais do que eu realmente saiba.

Lara era a irmã. A outra mulher.

Quando escrevi “a outra mulher”, não quis dizer que ela era “a outra”. Não necessariamente. Disso ainda não sei. Sei que ela era a outra, porque a primeira mulher era a Maria. Lara era irmã de Maria? Foi Lara quem cuidou das crianças quando Maria ficou internada no hospital? Eu disse “crianças”. Afinal, Clara tinha ou não tinha um irmão? E se tinha, era um só? E se havia outro, era do mesmo casamento, ou o pai tinha uma amante? Hmm, isso faz sentido. Talvez tivesse várias e ninguém falasse nada porque ele era médico de reputação... – que se dane, era médico. Não precisava ser mais nada. Se não comentavam sobre o que acontecia dentro de sua casa, amantes seriam peixe pequeno.

Lara. Ainda não sei muito dela. Vou ter que escrever para descobrir. Sarah disse que preciso continuar escrevendo, que tenho que escrever todo dia, porque aí está minha cura. Meu corpo está incrivelmente cansado. Não dormi direito noite passada – já disse isso? Meus olhos também começam a se embriagar. E eu não bebo. Já disse que não bebo? Já disse que não gosto do meu primeiro nome? Acho que dizer que meu nome é Maria é uma forma de assumir minha identidade. Afinal, esse é meu primeiro nome. Nunca gostei, mas acho que tenho que desconstruir isso. Desconstruir é outro termo que os psicanalistas usam. Minhas pálpebras pesam. O sono aumenta. Talvez deva parar de escrever agora. E dormir. Você acha que não durmo, não é? Mas eu durmo, sim. E me alimento. E tomo banho. E às vezes, mas acho que isso você já sabe, choro escondida no canto do quarto.

Acredite, mas não dê muita bola para isso neste momento: tem uma porção de coisas sobre mim que você ignora.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 25


Maria, mãe de Clara.

Doce Clara.

Maria ou Clara?

Maria e Clara.

Onde foram parar? Eu estou aqui, e tento reencontrar as duas. O piano volta em minha mente. Maria, a mãe, tocava piano. Sempre lindo, sempre triste. Sempre, não. No começo não era. Seu piano foi ficando assim, porque ela tocava o que sentia. Tocava o que sangrava. Tocava o que faltava. Solava sua dor. E mesmo que não soubesse, era a dor da filha, que a ouvia com a porta fechada, tocando no piano da sala. No passado, em um passado distante, o homem alto de cabelos negros a escutava tocar. Será que ele não percebeu que as melodias mudaram? Ou percebeu e não se importou?

E a irmã, que participação tinha nisso?

Talvez Maria, a mãe, tocasse antes da irmã se mudar para a casa deles.

Depois acabou.

Ou melhor, jamais acabou.

Ela está viva dentro de mim enquanto escrevo.

Eu, Maria.

Mas hoje o piano não me faz chorar. Amanhã, não sei.

Hoje apenas escrevo porque você prometeu voltar, e eu acreditei.

Você é mesmo meu parente ou é apenas outro alguém-ninguém, meu interlocutor imaginário que criei para não enlouquecer?

Não, eu não posso estar louca. Não. Não posso.

Então, suspiro. Às vezes estas paredes que me rodeiam parecem querer encolher e o quarto-cela fica mais apertado. Será o calor? Será o piano, que não sei mais se existe ou foi outro fruto da minha imaginação?

Ó, Maria, Ó, Clara. Quem mais temos aí? Algum animal de estimação? E Clara não tinha amigas? Com quem ela brincava? Em minha imaginação, sempre vejo ela sozinha. Uma criança brincando sozinha. Ou ela perdeu a capacidade de brincar? Isso faz sentido.

Acabo de me lembrar da história do gás. Você deve ter lido por aí. Existem sim crianças suicidas. O que levaria alguém a querer dar fim a tudo? Talvez esse fim já tivesse chegado, como para quem se mata já gente grande. E então essa história é sobre Maria, você pergunta. Talvez seja sobre todos eles. Talvez seja sobre a família inteira, e sobre mais alguém que ainda não apareceu. Eu continuo sem ter a menor ideia do que vou escrever segundos antes de sentar aqui, e assim tem sido noite após noite. Mas alguns elementos parecem ser recorrentes nessa história. Não, não pense que sou repetitiva. Apenas pense que se essas imagens voltam sempre na mesma história existe algo aí que ainda não consegui captar.

Nem na minha vida, nem na deles.

Por isso escrevo. Dói escrever, dói a verdade, seja ela qual for. A fantasia é tão melhor, tão mais perfeita. Por que não posso viver o resto da vida dentro deste quarto apenas escrevendo? Talvez deva esquecer esta história estúpida que não vai dar em nada. Talvez eu parasse de chorar entre uma sessão de escrita e outra, ainda escondidinha e não conto qual o meu lugar preferido para chorar – mas às vezes choro olhando para a tela, choro e escrevo e você acha que não, que apenas estou escrevendo e não escrevendo e chorando. Ou você consegue me ver apenas me lendo?

Diga-me, você consegue me ver apenas me lendo?

Você consegue ver Maria, a mãe, e Clara, a filha, apenas lendo o que estou tentando escrever?

Consegue ver o homem-demônio que está arruinando esta casa? Você tem raiva dele? Diga-me, o que você sente quando lhe conto tudo isso? Ou você é indiferente?

Todos foram, por que você seria diferente?

Mas ainda penso naquela garotinha, e ouvir esse piano que sua mãe tocava, e olhar para a foto daquele anjinho sorrindo para mim, me faz suspirar mais uma vez.

domingo, 24 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 24


21:34

Claro que pensei em não vir hoje.

Não vir não é bem a palavra, porque estou enclausurada aqui.

Mas pensei em não escrever, nem hoje nem nunca mais.

Para que insistir nesta história que ninguém vai ler, que nem quero que leiam e que me dói, palavra por palavra?

É a dor que cura, disse Sarah. Então resolvi escrever. Só mais um pouco, só mais um dia.

Ontem falei que tinha alguém que tocava piano naquela casa. Não tenho ouvido piano, e não sei se isso é bom ou ruim. Talvez nem tenha sido ontem que falei de piano, como você sabe ou acho que sabe, não me lembro de muita coisa antes de começar a escrever. Por isso escrevo. A história deve acontecer, e ainda tenho uma certa esperança de que possamos mudar o fim da história.

Você e eu.

As palavras me faltam, a permanência neste quarto tem me imposto limites, claro. O homem magro de cabelos lisos e negros não está lá enquanto escrevo. Por que nunca consigo dar um nome para esse homem, ainda mais que é apenas um personagem em uma história, e eu deveria ser a todo-poderosa contadora que escolhe quem vive ou quem morre nesta história?

Infelizmente não é assim.

Maria está cozinhando. Ela está cabisbaixa. Aliás, ela tem passado dias assim. Clara já viu sua mãe por longos períodos deitada na cama, sem sair de lá por nada. Clara pensa que a culpa é dela. Ela pensa que decepcionou a mãe. Maria gira o botão e sai o gás. Naqueles breves dois segundos, enquanto Maria risca o fósforo e acende o fogo, Clara a observa, atenta. E naquele momento, aprende como ligar o gás. E aprende que se riscar o fósforo, um fogo se cria.

Maria, por que foi ensinar Clara a ligar o gás?

É claro que Maria não podia imaginar o que aconteceria tempos depois, até porque – até onde se saiba – ela sequer sabia o que acontecia debaixo de seu nariz, dentro de sua própria casa.

E quando, tempos depois, Clara veio falar pra ela sobre o que o pai fazia, o pai médico que não podia arranhar sua reputação, Maria a chamou de mentirosa.

Ó, Maria, por que não acreditou em Clara quando podia? Quando ainda havia tempo?

Mas talvez não houvesse mais tempo.

O fim que corro escrevendo para tentar mudar, o final dessa história, a cada noite que busco palavras para registrar o que já passou, ou o que está passando, parece cada vez mais inevitável. Não existe uma forma de mudarmos o rumo das coisas? Talvez eu não esteja simplesmente contando uma história que acontece apenas em minha cabeça, mas uma história que – Deus queira que não – tem suas raízes na realidade, só que está acontecendo em algum nível da realidade, e já que estou intuindo como ela vai terminar, talvez eu possa fazer alguma coisa para mudar o destino. Ou estou escrevendo sobre algo que já aconteceu, e minha débil tentativa é apenas, já que não se pode mudar o passado, dar um novo sentido para o que passou.

Mas que sentido, em nome de Deus, esse Deus que deveria estar lá e não estava, pode ter tudo aquilo?

Uma vez mais, tenho vontade de chorar. E as teclas do piano voltam em minha memória. Não posso dizer que as escuto, mas em minha memória alguém toca piano.

Eu disse memória, de novo? Eu quis dizer que estou criando, e sei lá de onde, um som que vem se aproximando, em cor e nitidez, mas que some, e sei que alguém naquela casa tocava piano.

Era Maria quem tocava.

Maria, igual meu nome.

Maria Que Tocava Piano.

Maria Que Estava Viva Quando Tocava.

Por que ela parou de tocar?

Por que não há mais música aqui?

Tenho vontade de chorar, mas estou muito cansada para isso agora.

Quem sabe amanhã?

22:00

Nanowrimo – Dia 23


Um pouco atrasada, eu sei.

Achou que eu não viria?

Pessoas de pouca fé.

O caso é que agora é tarde da noite. Portanto não estou ouvindo o piano que tenho ouvido e até queria ouvir agora. Mas tem outra coisa: descobri  hoje que tinha alguém naquela casa que tocava piano. O que aconteceu depois ainda não sei, mas nesta história alguém tocava piano.

Você disse que espera ouvir o falar do homem dos meus pesadelos.

Quero dizer, dos pesadelos de Clara. Ó, Clara.

Hoje me ocorreu que, depois de ele ter voltado a beber, voltou com tudo e passou a se embebedar em bares próximos de casa e na própria casa. Em um desses dias, Clara chegou em casa e sentiu um odor forte de álcool. Ela ainda não entendia bem o que significava aquele cheiro, o que significava o poder do álcool, mas esse, junto com o café, foi o cheiro mais forte de sua infância. Não é um tanto bizarro? Você pergunta para uma pessoa o que ela lembra da infância e ela responde: cheiro de trago. Trago em geral, mas me vem a cabeça um Barreiro, parece que o Velho andava frequentando a casa naqueles dias.

Clara entrou em casa e sentiu aquele cheiro forte, mas nada estranhou. Depois de algum tempo, aquele era o cheiro do lar. Ela entrou, e era como se as paredes cheirassem a álcool, e como ela sentia cheiro do álcool que usavam no mimeógrafo da escola, até pareceu convidativo. O cheiro do álcool fazia ela se sentir em casa. Mas o homem alto moreno de cabelos negros, cujo nome não consigo lembrar – digo, inventar, porque tudo isso é, ou penso que é, uma história que estou inventando e vou permanecer confinada neste quarto, ou nesta cela, dependendo do ponto de vista, até terminar – tinha saído. O álcool que saía por seus poros deixava um rastro no ar, tanto que mesmo quando ele não estava em casa, o cheiro – seu espírito, eu diria – permanecia no ambiente. Sei que ele voltou para casa, provavelmente do bilhar, e começou a discutir com Maria.

Não eu.

A mãe.

Sei lá porque eles discutiam e não fazia diferença, o que importava para ele era discutir. Ele começou a pegar em seu corpo, começou a puxar ela para si. Ela estava de avental, sobre um vestido, que ele levantou, colocou a mão entre suas pernas, deslizou por suas coxas. Ela disse que não queria. Ele insistiu. Ela insistiu que não. Clara estava no corredor assistindo tudo. O homem alto e moreno de cabelos lisos deu com as costas da mão no rosto de Maria, tão forte que ela caiu no chão. Não, antes ele chamou ela de vagabunda. Vem cá, putinha.

Depois ele deu o tapa.

Ela ficou alguns segundos caída no chão, até que ele agarrou ela e ajudou ela a se levantar. Não vamos brigar, ele disse. Desculpe, eu me descontrolei, você sabe que eu te amo.

Ela disse que tudo bem.

Vamos para o quarto, ele disse. E ela foi andando na frente, tal qual um condenado e seus últimos passos no corredor da morte.

Pouco antes de fechar a porta, o diabo voltou a falar.

A falar, não. A sorrir.

Ele olhou para o corredor e viu que Clara tinha visto tudo. Então ele olhou para ela.

Dos pés a cabeça.

De novo, dos pés a cabeça.

E sorriu.

Ele fechou a porta do quarto, ainda olhando para Clara, olhar de assassino nos olhos de criança. 

Olhar de namorado nos olhos de criança.

Aquela não tinha sido a primeira vez que ele bateu em Maria.

Nem foi a última.

Mas naquele momento Clara decidiu que nunca ia beber.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Nanowrimo – Dia 22


Leia para descobrir o que você acha que consegue me ocultar, diz você. O que você percebeu que ainda não entendi, ou escondo de mim mesma?

De qualquer forma, penso que se algum dia alguém fizesse um filme disso que escrevo, e o que tenho escrito e que – você tem razão – não lembro, ele poderia começar com um piano, como o piano que ouço agora. Lindo.

E triste.

Não sei como você imagina que seja Clara ou como seja eu. Eu não importa, não quero falar de mim. Sou apenas alguém-ninguém que escreve esta história. Escreve para lembrar. De novo você tem razão. Mas como você pensa que é Clara? Vejo uma foto em minha frente, e ouço este piano e vejo este anjinho que me sorri. Poderia dizer a cor de seus cabelos, o formato de seu sorriso – mas ela sorri. E é o sorriso mais lindo do mundo. Um anjinho. Queria que essa foto tivesse se repetido para todo o sempre. Eu escreveria um livro só para tentar traduzir o que essa foto me passa, e o filme começaria com esse piano. Seu sorriso também é lindo, e fica ainda mais lindo quando olho para ele e as teclas do piano conduzem meu espírito para algum lugar bom.

Algum lugar bom, longe daqui.

Alguma pátria, de novo a linguagem de Sarah, algum lugar onde nada pode me ferir. Nem a mim, nem a ela.

E tenho vontade de chorar de novo.

Queria poder chorar escondidinha, e escondidinha já estou, apenas o piano me cerca, ele e seu espírito nas teclas que choram por mim, e colorem minha dor. Talvez coloram a dor de Clara. Sim, tenho certeza que esse piano é para dar algum sentido na dor daquela garotinha.

Lady Clara.

Clara do Sorriso Mais Lindo do Mundo.

Continuo escrevendo, e de novo as imagens aparecem e tão logo tento captá-las em palavras, elas somem.

Maria, mãe de Clara.

O que aconteceu com ela?

Ainda não sei.

Mas o homem moreno – deus, tenho que inventar um nome pra ele, qualquer nome – está tomando vinho. É sexta de noite. Por enquanto ele está calmo.

Clara tem medo. Maria também. Papai está bebendo de novo. Ele está calmo. Por enquanto. A casa continua no lugar. Clara e Maria também. Onde está o garoto, o do banho? Será que está tomando banho, aproveitando que o papai não vem? Mas ele é mesmo o pai? Não sei, uma coisa tão simples e não consigo perceber.

Maria das Incertezas.

Mas continuo escrevendo. Começo a suspeitar que não vou sair daqui enquanto não terminar essa história. Ou melhor, enquanto não entender essa história. Se você já entendeu, por que não me conta? Por que essa tortura?

Mais um pouco de sofrimento. Tudo bem. Vou continuar escrevendo, até que a dor passe, até que a confusão diminua, e isso talvez signifique que não vou sair deste quarto. Sinto um vazio que não cabe em palavras, que não cabe nem no buraco negro da galáxia. Será que Maria sentia o mesmo?

Não errei meu nome. Pensei, sem querer, mas pensei, na mãe de Clara. Pelo menos isso deduzo que seja. Maria é a mãe de Clara. Maria foi parar no hospital. Mas se ela está com Clara na casa (casa ou apartamento?), é porque Maria já voltou. Quanto tempo ela ficou lá? Talvez ela tenha tido mesmo depressão pós-parto, mas agora foi outra coisa. Clara não é mais recém-nascida. Será que Maria descobriu algo tão grave que a fez entrar em depressão a ponto de ser internada no hospital? Nesse momento, suponho, você se pergunta: ela sabia o que acontecia dentro de sua casa? Eu não sei. Sabia?

O piano continua tocando enquanto escrevo. Coloco fones de ouvido para não incomodar meus vizinhos dos quartos ao lado, e imagino o filme que fariam desta história mal escrita que estou tateando a cada noite. Pelo menos hoje, ouço um piano. E vejo a foto de Clara. Sorrindo como uma boneca com o sorriso congelado. O filme poderia começar com essa foto em um porta-retrato. O piano de trilha para a foto. Eu poderia descrever essa garotinha mais, e talvez seja o que você esperasse, talvez seja o que Sarah esperasse. Mas sei lá por quê, não consigo. Sei que ela é linda, e seu sorriso é como se guardasse a prova de algo divino que deve existir em algum lugar. Talvez você não acredite em nada disso, mas é porque você não vê a foto como eu vejo. E não sei se ela conseguiu sorrir assim de novo. A foto é permanente. A garota da foto não envelhece, não morre. E o sorriso não se desfaz.

Talvez seja por isso que escrevo.

Para saber em que momento aquele sorriso de perdeu.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 21


20: 44

Você diz que não admito as coisas.

Maria Que Não Admite As Coisas.

Mas do que você está falando? Escrevo para recuperar aquilo que não lembro. Talvez, sim, eu não queira lembrar. Se isso é não admitir, então talvez, como disse Sarah, eu faça isso para me proteger. Esses psicanalistas acham que a gente está sempre fugindo de alguma coisa. O que quer dizer basicamente: fugindo do passado. Mas escrevo para lembrar. Como vim parar aqui. Como era a minha vida antes da minha chegada a este quarto. A esta janela de onde observo a pracinha, alguns postes que iluminam o verde que há lá embaixo. A quadra de cimento onde as crianças jogam futebol. Uma quadra de areia onde as meninas jogam vôlei. A memória vai voltando conforme escrevo. Rá, por isso escrevo. Nem estou olhando mais para a pracinha, escrevo de memória, reescrevo de memória, como recomendava Scott Fitzgerald. Apesar de que não estou reescrevendo nada. Continuo pensando em voz alta. É como ter um gravador e eu falar para alguém, que provavelmente vai ser ninguém, ouvir minhas memórias. Mas não lembro nada.

E mal lembro o que escrevi ontem.

Acho que comentei que o homem magro e alto de cabelos lisos escuros trabalha em um hospital. Pensei que ele fosse enfermeiro, mas ele deve ser médico. Pode ser uma clínica, acho que já pensei isso. E em minha fantasia ele é ginecologista. O que talvez explique muita coisa. Gostava tanto de examinar as vaginas alheias que trabalhou também com sua filha, se bem que não sei se Clara era filha dele. Na verdade, e escrevo como se giletes cortassem meu braço isto, ele examinava Clara enquanto tomavam banho. No começo ela nada disse.

O tempo passou.

E ela continuou sem dizer nada.

Como ia dizer? E ia dizer o quê, para quem? Se sua mãe – só podia ser mãe – trocava suas fraldas, por que papai não podia examinar sua vagina, embora ela nem soubesse que aquela racha, porque ela não tinha o que o papai tinha no meio das pernas, se chamasse assim.

Ó, Clara.

A água escorria, junto com o sabão. Que caía feito lágrimas.

Lágrimas na chuva que ninguém ia ver, disse o Replicante no fim do filme.

Lágrimas no chuveiro ninguém vê também.

Ela podia chorar escondido. Mas em minha memória, digo, em minha imaginação, ela chorava no banho.

Tinha um garotinho também, mas ainda não sei quem ele é, ou como ele é. Acho que tinha os cabelos morenos. É possível que fosse filho do homem moreno – por que nunca lembro o nome desse homem? Acabo de escrever duas vezes o verbo “lembrar” em vez de “inventar”. Mas não é apenas uma história que estou tentando criar sei lá por quê? Será que, de alguma forma, ela está sendo inspirada por algo que aconteceu? Alguma notícia de jornal, quem sabe. Pode ter ficado no meu inconsciente.

Se Freud fosse vivo, será que ele leria estas cartas lançadas ao mar?

Poderíamos fazer um estudo de caso. Será que é isso que estou fazendo, um estudo de caso clínico? Mas de onde estou tirando isso tudo?

Maria, oh meu Deus, acabo de lembrar.

O nome da mulher, o nome da mãe é Maria.

É o mesmo nome que o meu.

Maria. Por que demorei tanto para batizar essa personagem?

Ela está no hospital. Recém separou, ou está separada, do marido. Ela é, ou era casada com o homem moreno cujo nome desconheço.

Mas o nome da mulher é Maria.

Tenho vontade de chorar.

Maria, Maria.

Tinha depressão pós-parto, mas ela pode ter ido para o hospital por outro motivo. Aliás, talvez ela entrasse e saísse de hospitais. Ela tinha outra doença? Por que tantas dúvidas se são apenas personagens e modelo eles como eu quiser? Foi assim que comecei tudo isto, lembra? Um narrador à procura de uma história – e agora você já sabe que é uma narradora à procura de uma história.

Neste momento sei que estou escrevendo com a clara intenção de não pensar, de ignorar o que acabo de perceber, e quero escrever e escrever e escrever, até que os pensamentos, todos eles fiquem lá atrás, de preferência se percam na floresta infinita dos neurônios, perdidos para sempre em algum lugar inacessível da minha cabeça. Mas isso não é possível.

Não posso ignorar o que acabo de perceber, mesmo que talvez amanhã eu não lembre e quero mesmo não lembrar, mas neste momento é impossível esquecer.

E é então que começo a chorar.

21:11

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Nanowrimo – Dia 20



22:58

Sobre o que é esta história, você me pergunta.

Vai ter que continuar lendo. Porque eu também ainda não sei.

Falta pouco para terminar o dia, pensei em escrever simplesmente “não estou a fim de escrever hoje, e não vou escrever mais nada, e that’s it, chega de história”, mas quando vi já estava aqui escrevendo. A chuva voltou. Quase mudei de quarto hoje, mas na última hora permaneci aqui.

O homem de cabelos negros está longe. A mulher está longe. Eles não vêm para jantar. Clara tem que fazer a própria comida. Veja, uma criança cozinhando. Não tem algo errado nessa cena? Diga-me, tem ou não tem? Eles a deixaram sozinha em casa. Pode ter sido uma exceção – ou será que sempre a deixam assim? Talvez ele seja médico, um cidadão de prestígio cujo prestígio não pode ser abalado. Isso me faz pensar. Imagine um escândalo entre quatro paredes e por isso mesmo mantido entre quatro paredes. Não podemos acabar com a carreira do doutor, e desde que ele é um homem de prestígio, as pessoas podem tolerar alguns deslizes. Ele tem uma amante? A mulher que penso ser sua cunhada é também sua amante?

Como vê, continuo tentando montar essa história e a cada dia ela parece mais distante de mim.

Não sei por mais quanto tempo vou aguentar escrever essa porcaria, esse monte de palavras que ninguém vai ler. Nem você vai ler, você vai se cansar antes de mim. Mas eu preciso lembrar o que aconteceu e como vim parar nesta cela. Ou neste quarto, dá no mesmo. Por isso tento colocar as imagens dessa historinha em perspectiva.

Maria Sem Saber O Que Fazer.

O relógio sumiu ou simplesmente parei de pensar nele?

A chuva parece que sumiu também.

De novo estou com fome. Acho que detectei esse padrão em mim: escrevo sempre de noite, muitas vezes chove enquanto escrevo e, sei lá por quê, prefiro passar um pouco de fome do que parar de escrever. Estou em busca de mim mesma. Preciso lembrar. Não sei do que trata essa história – embora, de novo, intua como ela termina e ainda tenho um pouco de esperança de mudar o fim, antes do fim.

Por isso escrevo.

Mas vou parar de escrever em breve.

Estou perdendo minhas forças.

E começo a suspeitar que estou enlouquecendo também.

Enlouquecendo.

Caindo.

Dentro de mim.

23:12

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 19



Estava cheia de ideias hoje. Maria Cheia de Ideias.

E de novo não anotei.

E de novo esqueci.

Pensei em não falar de Clara hoje.

Mas também pensei que tem algum motivo de por que não consigo criar um nome para aquele homem moreno que inventei. Se inventei, é só inventar. É só escrever, tão fácil. Mas talvez Clara também não saiba o nome dele. Eu sei, faz poucas linhas que disse que não ia falar nela. Então, o quê? Recaí? Falando nisso, hoje me ocorreu que esse homem cujo nome não consigo conceber, provavelmente por imaturidade intelectual, voltou a beber depois de dez anos abstinente. Isso é um dado interessante. Ele não bebia. Se Clara, de quem não vou falar hoje, era pequena, então talvez ela nunca tivesse visto ele beber. Mas depois de dez anos, ele voltou a beber. Foi assim: para comemorar que fazia dez anos que estava abstêmio, ele resolveu comemorar com um brinde. Não tenho certeza, mas em minha mente era um uísque caro. Escolha um. Johnnie Walker, Chivas, Cavalo Branco.

Eu não sei.

Também não bebo.

Digamos que fosse um Chivas. Um dezoito anos. Não, vinte anos. Ele ia comemorar seus dez anos com um vinte anos. E então ele tomou um gole. E destruiu a casa inteira. Bateu na mulher, bateu na filha (Clara? não sei se Clara era filha dele) e saiu por aí. Depois voltou. E no outro dia, comprou mais bebida. Mas por que não vi ele bebendo quando estava brincando na pracinha com Clara? Talvez ele ainda não tivesse voltado a beber. As coisas que crio, já que crio sem o menor planejamento, e continuo sem ter a menor ideia do que vou escrever antes de sentar aqui, talvez por esquecimento, talvez por não ser nem provavelmente jamais serei escritora, apenas vêm a minha mente. Confesso que gosto desse exercício de ir esticando as frases, porque é como esticar a vida, correr cem metros a mais quando a gente não aguenta mais correr. Acontece que de vez em quando eu me perco no que estava divagando.

Eu esqueço das coisas. Já disse isso?

Pode ter a ver com as dores que sinto pelo corpo. Pode ter a ver com algum acidente que deve ter ocorrido, e que talvez seja o que me trouxe a este quarto.

Escreva o que os leitores querem ler, diz você. Mas escrevo para mim. Ninguém vai ler. Por isso só tenho que agradar a mim. Sarah disse para eu descer fundo. Não sei se já consegui, mas juro que estou tentando.

Ouço canto de pássaros do outro lado da janela. Pássaros cantam à noite? Não é o som de corujas, é o mesmo cantar dos pássaros quando o dia nasce. Mas é noite, e ainda não é tarde.

Esta história é sobre Clara ou sobre mim?

Talvez seja sobre o homem cujo nome não consigo lembrar. Ou não consigo inventar. Você tem algum nome para me dar? Você que quem sabe me lê, mesmo que eu saiba que ninguém vai me ler, e nem quero. Assim posso escrever o que eu quiser. Porque se não for assim, não escrevo nada. Hoje ouvi Sarah falando, ou li em algum livro, não importa, que quando a criança sofre um trauma é como se uma enchente passasse e a gente não pode suportar tudo aquilo vindo, e por isso não consegue mais simbolizar, ou seja, não consegue falar sobre aquilo, nem brincar, já que a gente deságua nossas angústias nas brincadeiras. Ah, psicanalistas. Será que é por isso que Clara, quer dizer, Sarah disse para eu escrever? Escrever para desaguar as angústias. Ela acha que vou conseguir achar a chave do cofre se eu escrever. Por isso tenho escrito, mesmo sem vontade, mesmo sem inspiração ou a menor ideia do que vai vir na frase seguinte. Na verdade, nem estou escrevendo. Estou apenas pensando em voz alta. Ou pensando sem voz, mas com o auxílio do teclado. Pelo menos, desde que vim para cá, aprendi a digitar sem olhar para as letras do teclado, o que quer dizer que não sou uma inútil.

Não sou uma inútil, apesar do que disseram.

Tenho fome de novo, mas desta vez não vou parar de escrever para comer.

Por que o homem voltou a beber depois de dez anos? Sim, ele foi comemorar. Mas será que foi só isso? Talvez ele tenha se transformado em alguém que muitos não conheciam, pelo menos quem tinha algum vínculo afetivo com ele há menos de dez anos.

Sarah, assim como Tchekov, disse para escrever até os dedos quebrarem. Mas tenho me cansado e eles não quebram. Tantas coisas quebradas. Talvez lembre de mais coisas que se perderam pelo caminho, porque tenho certeza que foram várias.

E no quadro que vejo agora, a mulher está separada do homem moreno. A mulher está em depressão no hospital. A irmã ficou na casa. O homem está tomando banho com uma criança. Ele toca nela. Quem é a criança que não consigo ver?

Você vai dizer que é Clara, e penso nisso também, mas pode ser que seja um garotinho. Tem um garotinho, que acho que é mais velho do que Clara, e que eu não tinha visto antes. Eles não estão na praça, estão tomando banho. É outro filho do homem moreno? É sobrinho? Enteado? Não tinha pensado em enteado. Pensei que eles eram uma família, e até devem ser. Mas não sei que lugar ocupa cada um nesta história.

Penso em parar de escrever. Não apenas hoje, mas para todo o sempre. Ia fazer diferença para você? Para mim, não sei. Talvez o você a quem me dirijo, pensei agora, seja uma outra instância do eu, e você na verdade sou eu e eu sou você.

Ah, psicanalistas.

Mas talvez essa filosofia que estou inventando, assim sem inventar, esconda algo que ainda não consigo enxergar, um nó – ou vários nós – que não sei se vai, ou vão, ser desatados.

Acho que esta história não vai dar em nada. Vou parar por aqui. Chega.