sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 191


25 de dezembro de 2015

01:34

Há pouco estava chovendo.

Faz quase um mês que não escrevo aqui. Não que alguém fosse sentir falta, nem você que suponho me ler escondido ou escondida, você que talvez só exista em minha imaginação, como também possivelmente tudo que me rodeia. As garotas, o Asilo. A pequena Clara. Não sei. Apenas vou escrever qualquer bobagem porque eu sei: ninguém vai me ler.

É madrugada de Natal.

Choveu faz pouco. Quisera que ainda estivesse chovendo. Pelo menos eu teria um motivo para escrever, embora ainda não entenda qual a relação que existe na chuva + eu + o fim desta história.

De novo me arrepio.

A coisa está voltando.

Maria Chorona Que Se Emociona E Se Arrepia.

Não escrevi mais depois que Cris voltou da ala das Meninas Que Voam Pelos Muros. Queria ter visto ela hoje. Ela, que eu saiba, não tentou mais voar pelos muros. Mas uma vez Sarah me disse que esse desejo de voar pelos muros, nas pessoas que têm tendência a querer voar pelos muros, para o infinito e além, volta de tempos em tempos.

Não quero perder minha garota.

Não quero perder outra garota.

Outra, não.

Do fundo da caverna do poço fundo e escuro do inconsciente, este lugar para onde detesto olhar, e Sarah sempre soube disso, e às vezes odeio ela um pouco por isso também, me sopra uma vontade de chorar. Não quero perder outra garota.

Suspiro.

As palavras escorrendo, caindo, chorando, gemendo, sarando. Feito vento em corte que deixa cicatriz.

É madrugada de Natal. Não consegui, nem sequer tive vontade de, escrever depois que Cris voltou da ala das Meninas Voantes. Claudius voltou a beber, depois de dez anos em abstinência, acho que em uma noite de réveillon, quando deveria ter ido para o hospital cuidar de Maria, a mãe.

Maria, como eu, em um lugar – pensei agora – talvez parecido como este.

Mas não quero falar de Claudius agora, nem da titia putinha Lara, que gostava de derramar champanhe sobre o corpo em vez de cuidar da sobrinha Clara, do sobrinho Jonas e do filho Marcos.

É madrugada de Natal.

Não sei se sonhei ou sonhei que sonhei, mas Sarah me perguntou algo sobre o Natal. E esses psicanalistas do demônio sempre largam as iscas para pessoas perturbadas que não conseguem se conter, e as palavras vão saindo. E a gente fala. Ou escreve. E as imagens aparecem. Mais ou menos do jeito que escrevo aqui, sempre a partir do nada.

Blossom estava com seu caderninho, escrevendo sobre o sentido da vida. Cheshire passeou pelo chafariz. Lady Brownie disse que quer fazer doces para o fim do ano. A pequena Dafne finalmente apareceu com sua novidade, e passeia com sua novidade, que chora o dia inteiro e de noite, mas quando dorme é sempre cuidada com carinho pela pintora que me prometeu voltar a pintar – talvez sua pintura seja outra daqui para frente. Daf, mamãe. Seria uma pintura e tanto. Uma grande árvore de Natal, Dafne e sua novidade, felizes como mãe e filho. A Garota Nêutron também veio conversar comigo e Brownie nos corredores, perguntou se eu estava escrevendo. Eu disse que ia escrever, mas na verdade não tinha a menor vontade, como aliás geralmente não tenho, de escrever. Mas Nêutron, a Garota Que Sabe Das Coisas, quer que eu escreva. Acho que Daf também. Sabby costumava dizer para eu escrever, ela que não tenho mais visto pelos corredores. O Garoto Skinner, não sei. Acho que a Srta. Vygotsky se importava também, assim como Lady Ballet, que sempre quis voltar a dançar e parar de jogar as coisas fora, e acho que ela também já foi uma garota que quer voar pelos muros.

Mas talvez antes de começar toda a desgraceira naquela família, pensei agora, Clara apenas corresse pela casa, uma casa grande, com uma sala para o piano e para uma imensa árvore de Natal, que ia até o teto, com pequenos papais noéis de chocolate pendurados, uma corrente com luzes que piscavam, bolas coloridas. Clara, Jonas e Marcos pegavam os papais noéis antes da meia-noite, e comiam. Lá pela meia-noite só sobravam os papais noéis que ninguém tinha achado. Eles comiam, se sujavam de chocolate. Eram felizes, riam, devoravam papais noéis.

E acho que este é o melhor presente que posso imaginar, eu também me sujar, ser feliz e rir do absurdo da vida: devorar papais noéis, longe de toda dor, de todo o vazio que existe perdido nesta caverna, mas que aquele piano há de limpar.

E então, quando acharmos que é quase meia-noite, e não há mais papais noéis de chocolate a serem encontrados, descobriremos que no fim de tudo ainda haverá papais e mamães noéis nos aguardando.

E mais uma vez: seremos felizes.

Feliz Natal, doces crianças.

02:06

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 190


1 de dezembro de 2015

21:25

A rainha perdida no alto do castelo volta à vida. Anoitece. Silêncio no asilo. Não tenho a menor ideia do que vou escrever – ninguém vai ler esta merda mesmo, para que se preocupar? Mas queria registrar que Cris saiu da ala das Meninas Que Voam Pelos Muros. Um dos médicos disse que não gosta da palavra “cura”, acho que mais ou menos como diziam – pelo menos vou escrever o que meu inconsciente dita neste instante – naqueles grupos que Claudius ia, que talvez a pequena Clara tenha ido, talvez Maria, a mãe, que sofria junto vendo o Sr. Doutor tomando uns traguinhos – mas ele não bebia. Ele voltou a beber depois de dez anos quando, em vez de cuidar de Maria, a mãe, internada em um hospital – parecido com este lugar onde estou, não posso deixar de mencionar – estava se divertindo com a cunhadinha jovenzinha, titia putinha que deveria ter cuidado da sobrinha. Lara.

Suspiro.

Sempre volto ao mesmo assunto: a pequena Clara. Sua mãe. Maria.

Maria, como eu.

Internada em um hospital. Como a doce Cris, que ficou na ala das Meninas Que Voam Pelos Muros.

Maria, a mãe, tentou se matar?

Meu deus, nunca tinha pensado nisso.

Será que foi isso que aconteceu naquele réveillon?

A pequena Clara também?

Sim, Lady Clara tentou. Meu deus, a coisa está voltando. Todos morrem no fim?

Como vim parar neste fim de mundo?

De novo, me volta o medo de enlouquecer.

O que soa irônico vindo de alguém neste fim de mundo.

Suspiro de novo.

Ouvi pelos corredores que Sarah está meio doente. Ela não ministrou a aula hoje. Fiquei na dúvida com aquele Lacan (quando acho que ela não pode vir com nada mais insano que o velho tarado, ela sempre dá um jeito de se superar), mas acho que ele falava em estádios do espelho, tipo assim: Clara vê outra Clara, Clara percebe que vê uma imagem de Clara, Clara percebe que vê a própria Clara. Mais ou menos assim. Quem diria, essas loucuras andam me contaminando, como se fosse possível piorar em um lugar desses.

Maria Psicanalista.

Meu deus, onde nós vamos parar?

Sei que Sarah, antes de adoecer, tinha liberado Cris para vir me ver. Aliás, talvez ela venha aqui daqui a pouco. Não entendi bem por quê, e se há mesmo um motivo (deve haver, esses psicanalistas do demônio não dão ponto sem nó), mas Sarah permite algumas regalias entre Cris e eu, tipo, visitas no quarto depois do horário permitido, jantar mais tarde, depois do horário oficial.

A história que não compreendo está se desenhando e ainda não consigo decifrar.

Penso em Lady Ballet, a pequena Daf. Tanta gente que entra e sai daqui e tenho dúvidas se elas existem ou são apenas frutos da minha imaginação, como talvez tudo o que escrevo trancada aqui. Dafne e sua novidade – estaria ela pintando como disse que ia fazer? Lembro que uma vez a Ballet falou em recaída, não sei por que lembrei disso agora. Todas temos coisas que queremos jogar fora, pensei agora. Coisas que entraram e devem sair. Vomitando ou escrevendo, que no fundo são a mesma coisa.

O Garoto Skinner.

Cheshire, que não vi mais em volta do chafariz, junto com Blossom e seu caderninho. Acácia, correndo de um lugar para outro.

Vou escrevendo e essa coisa que não consigo nomear – que pode ser dor, vazio, vida ou esperança – vai se ajeitando feito as melancias da carroça. Acho que é por isso que escrevo. Ainda não entendo qual a mágica que acontece que me faz cuspir, digo, vomitar essas palavras do de dentro de mim – e no fim algo acontece. Que pode ser uma luz, esperança, um sentido.

Um amor de mãe a espera de que sua pequena princesa volte.

Tenho vontade de chorar.

Mas sorrio.

Tudo é sobre ela. Sobre o piano. Sobre a chuva. Sobre o alto do castelo. O jardim, o chafariz. Um amor de mãe que jamais esquece a filha. Jamais abandona a filha.

Jamais abandona.

E resgata sua princesa das profundezas do pântano.

Uma mãe jamais abandona, jamais esquece.

Maria, mamãe linda.

Pequena Sweet Lady Clara.

Não sei mais o que escrever, mas sinto que cheguei mais perto hoje.

Um pouco mais perto.

De resgatar uma princesa.

21:55