domingo, 16 de maio de 2010

Albatroz

No dia em que o navegador Nicolai completou 60 anos, ele caminhou sorridente pelo convés de seu navio e desceu até a cabina onde descansava sua esposa Natasha. Chegando lá, constatou que ela não estava. Olhou em volta, contemplando o casco da embarcação e viu um livro com capa de couro, repleto de anotações feitas à caneta com uma caligrafia feminina. Esticando seus robustos braços, Nicolai começou a ler os rabiscos do pequeno livro, onde dizia “não posso mais esconder esse segredo de Nicolai. Devo contar a ele sobre Mike. Deus, perdoai-me por ter abandonado tão formidável pessoa. Estou no mar há três meses e não consigo imaginar mais minha vida sem ele. Não há um dia sequer em que eu não pense nele, no seu cheiro, no seu toque. A cada momento, minha angústia aumenta, pois não consigo me livrar da culpa de tê-lo deixado. Deus, dai-me forças para contar e faça meu marido entender que...”

Natasha entra na cabina. Nicolai dá um soco no livro e grita “Mike”, olhando para ela. Ela olha para o livro no colo do marinheiro e retorna o olhar, levantando as mãos e pedindo para Nicolai se acalmar. “Mike”, ele grita uma vez mais, levantando-se. “Não é o que você está pensando”, diz ela erguendo os braços e protegendo o rosto. Nicolai a pega em seus braços e a esbofeteia. Natasha grita para ele parar. Ele bate mais forte. Ao sair da cabina, sobe as escadas e caminha em direção ao convés, lá permanecendo até o anoitecer.

Segurando no corrimão da proa, Nicolai fita a linha do horizonte, o infinito do mar, respirando fundo a brisa. Passaria ali a noite inteira imóvel, sob o vento frio do Sul, de onde o navio retornava. Vez ou outra, baixava os olhos e escutava Natasha chorar lá embaixo, em sua cabina. Nenhum deles disse uma só palavra durante a noite que pareceu se esticar por toda a eternidade. O barulho dos suspiros contidos dele perdiam-se em meio às pequenas ondas que batiam no casco do barco. Oriundo de uma família de pescadores do norte da Sibéria, ele havia conhecido Natasha em uma de suas viagens a Bielorússia, terra natal dela. Filha única de um casal de mercadores, ela fugiu de casa aos 20 anos para viver com Nicolai, contra a vontade dos pais, que odiavam o marinheiro. E sempre confidenciava: havia apaixonado-se por ele por causa de seus “olhos verdes de um mar egípcio”. Ele então contava com 55 anos.

Ao amanhecer, o navegador verifica as amarras perto da popa e ouve o ranger da embarcação. Ele olha por sobre o ombro e seu rosto denuncia o erro: um furacão vindo do Leste se aproxima. “Impossível”, ele diz. “Impossível não ter previsto...”. Nicolai não completa a frase. A fúria de Deus invade o oceano. Vagalhões castigam o navio, que começa a sacudir. O vento arranca a vela, arrastando Nicolai pelo assoalho. Ele prende-se ao mastro, tentando alcançar a rede. A tempestade chega rápido, inundando o convés. As cartas de navegação, os condimentos e a bússola são espalhados pelo chão. Nicolai é arremessado para perto da escada, batendo em uma das bordas do casco, fraturando a perna. Ele joga seu corpo para trás, desabando pelos degraus até o corredor de acesso às cabinas. Gritando, põe a mão sobre a coxa direita, percebendo um talho de quase dez centímetros. Contrai a perna com a palma da mão e segue mancando para a cabina, tropeçando no baú perto da porta de entrada, que arromba com uma investida do cotovelo e ombro esquerdos. Natasha grita para que ele fique longe dela. Ofegante, ele diz que não vai machucá-la e avança em sua direção. Ela começa a gritar de forma histérica para ele não encostar nela. Nicolai diz que o navio está afundando. Ela se desvencilha dos braços dele e corre para a escotilha, localizada nos fundos da cabina. “Natasha”, ele diz, vendo-a abrir a escotilha e fazendo toneladas de água serem derramadas pela portinhola. Um grande solavanco quase vira a embarcação, lançando os corpos dos dois contra a parede. Natasha bate de cabeça. Nicolai se engasga com a água salgada, lutando para não se afogar.

Natasha consegue chegar ao convés. Ao olhar para o lado, vê as muralhas de água que continuam atingindo o barco, produzindo nele um lento rodopio. Ela é derrubada e arrastada pelo convés, junto com o mastro que acaba de cair. Levada até a popa, Natasha é jogada de uma borda a outra, conforme o navio vai oscilando.

Nicolai pula sobre o mastro inclinado dois metros acima da água, agarrando forte e se arrastando sobre ele, lutando contra o vento para chegar até Natasha. Ao chegar perto dela, quase encostando em sua mão, o barco sofre outro solavanco, atirando seu corpo para a outra extremidade. Nicolai se deixa cair na água do convés e seguir a correnteza estabelecida ali dentro rumo à popa. Natasha é jogada de volta, colidindo com o corpo do marinheiro, que fica preso na rede de pesca. Ao se desvencilhar, Nicolai vê Natasha dependurada no corrimão da borda, quase já no mar. Entre passos frenéticos e pulos imprecisos, ele a segura pelo braço no exato momento em que ela escorrega do corrimão. O navio treme. “Eu não vou soltar, querida”, diz o marinheiro sem fôlego. “Nicolai”, diz Natasha com o olhar triste. “Aguente firme. Segure meu braço”, grita ele. E então, como se o furacão fosse avisado, há uma breve pausa na tormenta. Natasha olha para o verde de um mar egípcio. “Eu te amo”, ela diz. E cai.

E ele viu almas perdidas sobre a água, olhando com pesar. O vento diminui até se esvair. O navio ainda flutua.


Ao chegar em um vilarejo costeiro, em uma das setecentas ilhas do arquipélago das Filipinas, Nicolai continua a caminhar por entre a rua estreita de pequenas casas. Ele acena para uma mulher velha, de pele rosada, vestindo uma espécie de touca e um avental desbotado. Ela o cumprimenta de volta. Ele se aproxima e pede para falar com Mike. Sem fazer perguntas, a velha pede para o marinheiro aguardar, entrando em sua casa. Ao voltar, a mulher traz consigo um menino de quatro anos. Nicolai olha fundo nos olhos do menino. Olhos verdes de um mar egípcio.




Nota: a narrativa foi inspirada nas melodias de Ghost of Navigator e o nome “Albatroz” foi retirado da música Rime of the Ancient Mariner do IRON MAIDEN. Segundo a lenda, no mar há um albatroz que acompanha as navegações mais ao Sul, trazendo boa sorte. Na viagem de volta ao Norte, o marinheiro matou o albatroz, trazendo consigo uma terrível maldição para o navio.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Mother Russia

No dia em que a proprietária da sede do Distantes Trovões on line e mãe deste que vos escreve está de aniver e foi comemorar conhecendo a outra Mãe, levanto cedo para escrever enquanto o dia nasce lá fora, os passarinhos cantam e a chuva continua.

Então já começo a enumerar a lista de coisas a serem feitas nos próximos 12 dias, antes que o telefone comece a tocar, a saber: rever a Quarta Temporada da série preferida deste blog, começar a leitura de O Livro dos Livros Perdidos de Stuart Kelly, escrever outro projeto para concorrer a uma bolsa – a luta continua –, ver Flight 666 do Iron “Gods” Maiden, seguir escrevendo o meu rebento e responder a carta da minha tchutchuka.

Mais tarde ouvirei pela primeira vez na íntegra o disco de jazz mais vendido de todos os tempos, uma trilha e tanto para dar a dica de leitura de hoje, os textos de meu comparsa Marcelo Martins.

Então para abrirmos os trabalhos, deixo aqui uma singela homenagem a minha mãe e ao meu camarada, guitarrista e colega musical de longa data Giuliano, Mother Russia tocada pela melhor banda do mundo.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Sargaço

Depois de ficar quebrando a cabeça - ainda estou me alfabetizando nessas linguagens de internet - para aprender a inserir links, abro os trabalhos no mês de maio com esses caras, que descobri no blog do Saramago. Um jazz da pesada (não se preocupe, Giuliano, prometo um video de peso para breve. Aliás, acabo de linkar o show do Megadeth ali do post abaixo).

Já aproveito e deixo um abraço para meu comparsa das letras Marcelo Martins, para quem mandei esse video há algum tempo, e com quem troco figurinhas sobre sax tenor x sax alto x literatura, e de quem ainda aguardamos o endereço do blog.

Play it loud.