domingo, 30 de abril de 2017

Piano Para Pequena Clara – Dia 210


Sábado, 29 de abril de 2017

23:30

Faz frio no asilo. Mesmo assim, saí um pouco aqui da Casa e caminhei pelo campo lá embaixo. Senti o frio, a umidade, a noite. O piano voltou para mim. Não sei mais se foi sonho, delírio, vontade: parecia a música que falava na mulher cristã, ouvi as teclas, a voz de Peter Steele, explicando toda a dor e o amor do mundo.

Neste asilo sem fim.

O caso é que, antes do frio, este frio mágico que amo, caminhei por aqui. Tinha me esquecido como este lugar é grande, como há outros prédios, janelas, grades, quase apartamentos por aí. Queria ver de novo o chafariz que fazia Cheshire dançar e sorrir, vestindo seu pijama, mas fui até a ala das Meninas Que Voam Pelos Muros. Pelo visto sou mais conhecida do que imagino pelas minhas irmãs-zumbis, porque senti que olhavam para mim e comentavam.

Ouvi trechos de um tal jogo da Baleia Azul, e uma delas jogou esse jogo. O último desafio, depois de coisinhas como subir em um prédio alto e cortar as palmas das mãos – também passei pela ala das Meninas Que Se Cortam, notei várias com a fita preta no braço esquerdo, mas poucas com as borboletas desenhadas no corpo – e o desafio final é se matar. Ouvi uma das garotas que jogou esse jogo e conseguiu sair antes do fim porque alguma boa alma, suponho, entrou em contato com ela, de forma anônima, e disse que ela valia a pena.

Valemos a pena, garotas.

Talvez essa seja a lição que temos que aprender.

Sei que ela conseguiu sair do jogo a tempo, sem ter as reprimendas que disseram que ela ia ter caso o fizesse, e ela falou para as outras não entrarem nessa roubada.

Uma ou outra concordou, mas vi cabeças acenando, mais por curiosidade do que por concordarem, no sentido de que ficaram pensando: por que não?

A doença não tem cura, lembrei, e talvez Claudius tenha ouvido isso em algumas daquelas reuniões que frequentava antes de voltar a beber depois de dez anos em abstinência, quando estava se divertindo com a cunhadinha Lara em uma noite de réveillon – quando deveria ter cuidado de Maria, a mãe, internada no hospital.

Maldito, filho da puta.

Doutor Abusador, espero que esteja queimando no inferno.

Se existe mesmo uma mágica que me faz escrever o que escrevo, e só pode existir porque jamais sei o que vou escrever antes que as palavras saiam de mim, vindas não sei de onde, acho que lembrei de Claudius, pai de Clara, porque lembrei que Sarah disse que havia na internet um projeto chamado Pode Gritar, com relatos das meninas que passaram pelo que a pequena Clara passou.

Em algum momento, Claudius deve ter dito para Clara, como talvez já tenha escrito aqui, que ninguém ia acreditar nela, não havia nada de errado naquilo, era apenas um pai amando sua filha, não conte para sua mãe, se você contar ela não vai acreditar, ninguém vai acreditar, você é uma criança, um dia você vai entender.

Talvez, e essa é a minha dúvida enquanto escrevo: a pequena Clara tenha entendido.

Não sei se tarde demais.

Não sei se ela falou.

Não sei se ela escreveu.

Me arrepio.

Ela pode não ter falado, porque não podia, porque não conseguia falar. Quero dizer a ela: conte sua história, pequena Clara.

Escreva, se você não consegue falar.

Ó, meu deus.

Escreva, se você não consegue falar.

Conte sua história, pequena Clara.

Conte, que um dia o mundo vai ouvir.

Se não puder ouvir, que leia.

Feito mensagens lançadas ao mar. Ou do alto do castelo, doce princesa.

Ou do alto do quarto de um asilo frio.

E um dia: a dor vai passar, meu amor.

23:57

domingo, 2 de abril de 2017

Piano Para Pequena Clara – Dia 209


Sábado, 1 de abril de 2017

Faz mais de mês que não escrevo. Não que alguém fosse se importar. O piano volta em minha mente, mas há guitarras junto hoje. Alguém nos confins do asilo estava ouvindo de novo Type O Negative – reconheci pela voz de Peter Steele. Parecia ser uma música que falava de Deus, de Jesus, de uma mulher cristã. O piano triste e lindo, feito um corte no pulso, cinza feito um coração apaixonado – cinza é minha cor; cinza de paraíso. O outono começou e talvez o cinza tenha me trazido de volta.

Cinza feito um sonho bom.

Na noite passada, aqui na Casa, que é um lugar à parte dentro do asilo, e que fica no alto de uma espécie de colina, cercada por muros e alguns jardins – sei lá por quê, me lembrei que isso aqui também poderia ser um chiqueiro ou um lugar para deixar leprosos longe dos outros – tivemos uma espécie de comemoração. Ou ritual, não sei. Tivemos a permissão de dormir mais tarde, enquanto algumas pessoas ficaram de plantão nos corredores. Não me importo muito com permissões para dormir tarde, sou a Maria Noctívaga Por Natureza, mas aqui – diferente das Alas das Grades, como já devo ter escrito, parece que o tempo corre em outra batida. Tenho irmãos e irmãs-zumbis que parecem feitos de borracha. Eles não conseguem parar em pé, e babam por cima da roupa quando estão comendo. Eles gritam.

Eles são amarrados com faixas nas camas.

Mas, depois que jantamos ontem e fomos dormir, e a maioria de nós tomou seus remedinhos, a coisa se acalmou. Antes disso, houve brincadeiras, houve teatro, houve piadas, houve música. Houve alegria.

Depois houve solidão.

Consegui ir até a escada que vai da Casa até o pátio – senti saudades do chafariz que Cheshire tanto gosta, e que está em uma parte mais distante do asilo – e olhei para o céu. O frio está voltando aos poucos. Muros, piscina, grades outras. Flores. Jardim.

O caso é que enquanto as Meninas Que Vivem Naquela Parte Do Tempo Que Não Se Encaixa Neste Tempo adormeceram, não consegui dormir. Os guardiões do corredor ficaram cochichando, com uma luz distante acesa – que entrava pelas frestas, barulho e luz.

Então você surgiu no corredor, talvez tenha se levantado para ir no banheiro, porque me imaginei contando a história da pequena Clara, resumindo para mim mesma – Maria, a mãe, casada com Claudius, médico alcoólatra que voltou a beber depois de dez anos em abstinência, que batia em Maria, abusava da filha deles, Clara, tinha um caso com Lara, sua cunhada, e um filho não assumido com ela, Marcos. Também era pai de Jonas, filho de Maria. Havia duas crianças legítimas, Clara e Jonas.

E você me perguntou no corredor:

—  E se houver uma terceira criança?

Me arrepiei como nada havia feito até então. Não Marcos, mas uma terceira criança.

Filho ou filha de Claudius e Maria.

Então você sumiu no corredor e voltou a dormir.

Continuo escutando o piano e agora não sei mais o que escrever.

E se houver uma terceira criança?

Meu deus, como vim parar aqui?

Aqui na Casa também existem meninas com a fita preta. Vi os laços pendurados em seus punhos, a assinatura das Meninas Que Se Cortam, e como há desenhos espalhados por aqui – como atividades a serem feitas, tipo por criação ou um exercício para a escola, e só agora percebo isso – notei que há borboletas desenhadas. As meninas que desenham borboletas para não se cortarem ou não voarem pelos muros também estão por aqui.

Somos todas Marias.

Meninas Com Fendas se entendem.

Suspiro.

Algum dia sairei daqui?

E ir para onde, me pergunto.

Voltar para casa, talvez, mas o dia em que descobrir para qual casa voltar talvez seja o dia em que me abram a porta da frente.

Uma sentinela dos corredores bate em minha porta, diz que já é tarde.

Odeio quando me interrompem, porque interromper a escrita é interromper a vida. E ambas devem seguir.

Ouço a voz de Peter Steele e agora um solo de guitarra que já nem sei mais se existiu mesmo ou é criação minha. Sarah diria que se é criação minha, de alguma maneira existiu. Ah, psicanalistas e suas charadas.

Estou cansada. Mas a noite vai seguir. Um novo mês está começando. Anotei algumas frases que são como sinais para eu tentar desenvolver algum tipo de conexão nesta história que nem história é.

Ou talvez, como ouvi esses dias, na psicose a história nunca termina.

Então você se pergunta se não termino esta história porque não quero, já que – de uma forma que ainda não consigo entender – já sei como ela termina.

Talvez consiga. Só não consigo suportar.

Quando conseguir isso, se chegar esse dia, então sim: poderei voltar para casa.

00:19