Sexta-feira,
2 de junho de 2017
23:16
Alguma
coisa aconteceu.
Alguma
coisa que ainda não entendo.
Por
isso escrevo.
Nesse
mês que recém terminou, passei dez dias ou podem ter sido dez anos, não sei, em
um mesmo corredor deste asilo infinito, deitada em uma cama, com tubos enfiados
em minhas veias e uma poção mágica que doía a cada vez que erravam a veia.
Presa no mesmo corredor, caminhando de um lado a outro, o mesmo Corredor
Eterno, presa no mesmo dia sem fim.
Acho
que o bichinho que mordeu Lady Brownie me mordeu também, e fui gradualmente me
transformando na garota que anda em slow motion. Maria Que Tem Que Parar.
Ouvi,
nesses dias perdidos no tempo, em que ainda não consigo decifrar, que um cara
chamado Chris se matou. Descobri quando alguém nesse Corredor Eterno estava
ouvindo uma música que lembrou o piano que ouço de tempos em tempos, mas tinha
um som diferente. Falava de um sol de um buraco negro, e esse Chris perguntava
se ele não ia vir.
Você
não vai vir?
Me
arrepio uma vez mais quando escrevo, esta história maldita que não me deixa
descansar.
Nem
você, que talvez ainda me leia quando cochilo, eu que sou a Maria Insone.
Pensei
que esse Chris devia ser um Menino Com Fendas. Como Peter Steele.
Como
nós todas, Meninas Com Fendas, à espera deste sol de buraco negro – um sol
dentro de um buraco negro, não tinha pensado nisso.
Esperança.
Sei
que passeei pelo Corredor Eterno, olhando das janelas para uma parte
desconhecida do asilo, e deixe-me dizer que jamais imaginei vir para esta parte
do asilo, muito menos tomar a poção mágica que me inundou, mas vá lá, a gente não
sabe o que vai acontecer. Nem sei como termina a história da pequena Clara, nem
se ela termina, e acabei esquecendo dela.
Mas
essa merda sempre volta, tipo o retorno do recalcado, ai, Sarah, e seus
absurdos psicanalíticos.
O
caso é que quando passeei pelo Corredor Eterno, com portas fechadas e abertas
dos quartos ao lado, e gente de branco, não sei se anjos ou fantasmas, que
vinham furar meus dedos algumas vezes ao dia, eu com o cateter pendurado no
braço para que minhas irmãs soubessem que são minhas iguais, revivi o que senti
na Ala das Meninas Que Se Cortam, quando mostrei minhas cicatrizes, e quando
fui acolhida pelas Meninas da Fita Preta e as Meninas do Projeto Borboleta.
Ao
verem meu cateter, passei a pertencer.
Uma
vez mais, reencontro minha família.
Meu
deus, me arrepio quando leio o que acabo de escrever.
Minha
família.
Tudo
volta para ela.
Sweet
lady Clara, a garotinha que é o coração de tudo que escrevo, esperando o piano
de sua Maria, mamãe querida, e talvez de uma forma que ainda não compreenda, ou
não possa, ou não queira, ou não esteja pronta para entender, essas histórias
todas se cruzam.
Não
pensei mais em Claudius, doutor maldito abusador, nem Lara, a titia putinha,
que estava se divertindo com o cunhadinho, enquanto Maria, a mãe, estava
internada no hospital.
E
você que talvez me leia já deve adivinhar o que vem a seguir: internada em um
hospital parecido com este lugar.
Que
bom que ninguém jamais vai ler essas bobagens que escrevo aqui.
De
qualquer forma, escrever, assim para alguém-ninguém, mesmo que você só exista
em minha mente, talvez me ajude a sair do outro lado, e mesmo que agora, depois
das semanas no Corredor Eterno e da poção mágica entrando em minha veia todo
santo dia, e o bichinho de Brownie que me fez caminhar devagarzinho, não tenha
a menor ideia do que seja este lado e aquele lado.
Brownie,
a garota em slow motion que faz doces com cheiro de infância.
A
infância que não lembro.
Mas
que tento criar, se não for mais possível recuperar. Cada vez que escrevo.
Vi
pessoas, tive conversas. Não sei se foi sonho, mas em minha mente tudo foi
real. Real e não real. Tipo um sonho que na verdade pertence a uma vida
passada. Penso em Brownie uma vez mais, lembro do sonho que tive com ela em que
dançávamos juntas, cantado bonjour, bonjour, bonjour.
Dançaremos
de novo, Lady Brownie?
Ouço
em minha mente Chris cantando wash away the rain, eu que sou a Maria que
escreve quando chove, mesmo que não tenha escrito nos dias chuvosos que
fizeram, porque talvez a história da pequena Clara termine mesmo em um dia de
chuva.
E
porque talvez ainda não esteja pronta para terminar essa história. Pelo menos
sem ter uma outra história começando, um novo começo para substituir a dor que
deve partir. Levada para longe pela chuva.
Então
acredito que sim, Brownie: dançaremos juntas de novo, e sentirei esse cheiro de
infância dos brownies, e sorrirei, princesa arteira que sou. Feito aquela
garotinha que volta em meus sonhos, e que deve ter mesmo existido. Feito uma
vida passada. A princesa do papai que não queria ter sido sua amante, maldito
seja. Talvez ainda possamos consertar as coisas. Talvez possamos encontrar um
sentido na dor.
Talvez
o Corredor Eterno tenha vindo para me mostrar, o que não consegui ver desde a
primeira linha que escrevi aqui. Talvez a poção mágica nas veias e o andar em
slow motion, o fôlego que chega curto, também.
Não
tinha nada para escrever, como jamais tive desde a primeira palavra que escrevi
aqui, nesta História Infinita. E então a mágica que ainda não consigo nomear,
porque consigo nomear quase nada, e isso deve ser sintoma de alguma coisa, ai,
psicanalistas do inferno – e então a mágica acontece. E meus dedos tomam o
fôlego e a velocidade que minhas pernas não possuem mais. Pelo menos, hoje.
Lembrei daqueles grupos que Claudius ia. Hoje, não. O futuro a Deus pertence, pareço
ouvir vindo não sei de onde.
Chris
toca no céu. Solando agora em seu Corredor Eterno. Como Peter Steele. Como você
e eu.
Então
sei que dançaremos de novo, ó doce garota dos brownies. Feito princesas
coreografando em um sonho bom.
À espera do sol dentro do buraco negro.
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