sábado, 3 de junho de 2017

Piano Para Pequena Clara – Dia 211


Sexta-feira, 2 de junho de 2017

23:16

Alguma coisa aconteceu.

Alguma coisa que ainda não entendo.

Por isso escrevo.

Nesse mês que recém terminou, passei dez dias ou podem ter sido dez anos, não sei, em um mesmo corredor deste asilo infinito, deitada em uma cama, com tubos enfiados em minhas veias e uma poção mágica que doía a cada vez que erravam a veia. Presa no mesmo corredor, caminhando de um lado a outro, o mesmo Corredor Eterno, presa no mesmo dia sem fim.

Acho que o bichinho que mordeu Lady Brownie me mordeu também, e fui gradualmente me transformando na garota que anda em slow motion. Maria Que Tem Que Parar.

Ouvi, nesses dias perdidos no tempo, em que ainda não consigo decifrar, que um cara chamado Chris se matou. Descobri quando alguém nesse Corredor Eterno estava ouvindo uma música que lembrou o piano que ouço de tempos em tempos, mas tinha um som diferente. Falava de um sol de um buraco negro, e esse Chris perguntava se ele não ia vir.

Você não vai vir?

Me arrepio uma vez mais quando escrevo, esta história maldita que não me deixa descansar.

Nem você, que talvez ainda me leia quando cochilo, eu que sou a Maria Insone.

Pensei que esse Chris devia ser um Menino Com Fendas. Como Peter Steele.

Como nós todas, Meninas Com Fendas, à espera deste sol de buraco negro – um sol dentro de um buraco negro, não tinha pensado nisso.

Esperança.

Sei que passeei pelo Corredor Eterno, olhando das janelas para uma parte desconhecida do asilo, e deixe-me dizer que jamais imaginei vir para esta parte do asilo, muito menos tomar a poção mágica que me inundou, mas vá lá, a gente não sabe o que vai acontecer. Nem sei como termina a história da pequena Clara, nem se ela termina, e acabei esquecendo dela.

Mas essa merda sempre volta, tipo o retorno do recalcado, ai, Sarah, e seus absurdos psicanalíticos.

O caso é que quando passeei pelo Corredor Eterno, com portas fechadas e abertas dos quartos ao lado, e gente de branco, não sei se anjos ou fantasmas, que vinham furar meus dedos algumas vezes ao dia, eu com o cateter pendurado no braço para que minhas irmãs soubessem que são minhas iguais, revivi o que senti na Ala das Meninas Que Se Cortam, quando mostrei minhas cicatrizes, e quando fui acolhida pelas Meninas da Fita Preta e as Meninas do Projeto Borboleta.

Ao verem meu cateter, passei a pertencer.

Uma vez mais, reencontro minha família.

Meu deus, me arrepio quando leio o que acabo de escrever.

Minha família.

Tudo volta para ela.

Sweet lady Clara, a garotinha que é o coração de tudo que escrevo, esperando o piano de sua Maria, mamãe querida, e talvez de uma forma que ainda não compreenda, ou não possa, ou não queira, ou não esteja pronta para entender, essas histórias todas se cruzam.

Não pensei mais em Claudius, doutor maldito abusador, nem Lara, a titia putinha, que estava se divertindo com o cunhadinho, enquanto Maria, a mãe, estava internada no hospital.

E você que talvez me leia já deve adivinhar o que vem a seguir: internada em um hospital parecido com este lugar.

Que bom que ninguém jamais vai ler essas bobagens que escrevo aqui.

De qualquer forma, escrever, assim para alguém-ninguém, mesmo que você só exista em minha mente, talvez me ajude a sair do outro lado, e mesmo que agora, depois das semanas no Corredor Eterno e da poção mágica entrando em minha veia todo santo dia, e o bichinho de Brownie que me fez caminhar devagarzinho, não tenha a menor ideia do que seja este lado e aquele lado.

Brownie, a garota em slow motion que faz doces com cheiro de infância.

A infância que não lembro.

Mas que tento criar, se não for mais possível recuperar. Cada vez que escrevo.

Vi pessoas, tive conversas. Não sei se foi sonho, mas em minha mente tudo foi real. Real e não real. Tipo um sonho que na verdade pertence a uma vida passada. Penso em Brownie uma vez mais, lembro do sonho que tive com ela em que dançávamos juntas, cantado bonjour, bonjour, bonjour.

Dançaremos de novo, Lady Brownie?

Ouço em minha mente Chris cantando wash away the rain, eu que sou a Maria que escreve quando chove, mesmo que não tenha escrito nos dias chuvosos que fizeram, porque talvez a história da pequena Clara termine mesmo em um dia de chuva.

E porque talvez ainda não esteja pronta para terminar essa história. Pelo menos sem ter uma outra história começando, um novo começo para substituir a dor que deve partir. Levada para longe pela chuva.

Então acredito que sim, Brownie: dançaremos juntas de novo, e sentirei esse cheiro de infância dos brownies, e sorrirei, princesa arteira que sou. Feito aquela garotinha que volta em meus sonhos, e que deve ter mesmo existido. Feito uma vida passada. A princesa do papai que não queria ter sido sua amante, maldito seja. Talvez ainda possamos consertar as coisas. Talvez possamos encontrar um sentido na dor.

Talvez o Corredor Eterno tenha vindo para me mostrar, o que não consegui ver desde a primeira linha que escrevi aqui. Talvez a poção mágica nas veias e o andar em slow motion, o fôlego que chega curto, também.

Não tinha nada para escrever, como jamais tive desde a primeira palavra que escrevi aqui, nesta História Infinita. E então a mágica que ainda não consigo nomear, porque consigo nomear quase nada, e isso deve ser sintoma de alguma coisa, ai, psicanalistas do inferno – e então a mágica acontece. E meus dedos tomam o fôlego e a velocidade que minhas pernas não possuem mais. Pelo menos, hoje. Lembrei daqueles grupos que Claudius ia. Hoje, não. O futuro a Deus pertence, pareço ouvir vindo não sei de onde.

Chris toca no céu. Solando agora em seu Corredor Eterno. Como Peter Steele. Como você e eu.

Então sei que dançaremos de novo, ó doce garota dos brownies. Feito princesas coreografando em um sonho bom.

À espera do sol dentro do buraco negro.

00:04