22:08
Estive lendo hoje e, claro, cada vez que leio outros autores
acho o meu texto cada vez mais pobrinho. Meu consolo é que ninguém jamais vai
ler isto que escrevo agora. Sarah disse: escreva o que quiser, o papel não vai
te julgar, ninguém vai ler. E ninguém vai mesmo, nem eu, que jamais volto ao
que escrevi na noite anterior, porque não quero lembrar.
Quer dizer, quero e não quero.
Mas você me pergunta se nunca saio do quarto. Digamos que
este lugar onde estou, que pode também ser uma cela, seja um quarto. Bem, é
claro que saio daqui. Não como aqui, e de novo estou com fome. Mas Sarah me
pergunta se escrevi hoje, e tenho medo de que ela não me deixe comer se eu não
escrever. Sei lá, depois de um tempo, eu mesma acabo me cobrando se não escrevi
e mesmo que saiba que jamais vou ser uma escritora, eu, Maria Anônima, por
algum motivo, depois que começo a escrever acaba saindo alguma coisa.
Uma coisa que ainda não entendi é por que o homem moreno de
cabelos lisos voltou a beber depois de dez anos. Ouvi dizer que se alguém para
de ir nas reuniões, mais cedo ou mais tarde volta a beber. Será que foi
isso? Diga você, você me diria, a história é sua.
Sim, a história é minha.
E acredite, um arrepio me passa sorrateiro ao escrever isso.Bom, eu posso escrever o que quiser, e se ficar ruim, ou muito ruim, é só voltar, escrever de novo. Para que se importar? Ninguém vai ler.
Mas fica a pergunta: ele já fazia o que fazia com Clara
antes de voltar a beber? Acredito que sim, porque também ouvi dizer que o
álcool apenas tira certos freios, mas não pode alterar uma índole. Talvez
possa, não sei muito disso, ou sei, mas não sei, entende? Até porque eu não
bebo. E acabo de me lembrar, pelo pouco que lembro da história que eu mesma
criei, que um dos cheiros mais característicos da infância de Clara era o
álcool. A casa, as paredes, o ar, a água do chuveiro. Tudo parecia vir de um
sonho, e tudo tinha cheiro de álcool. Clara jurou que nunca ia beber, não sei
se Jonas fez o mesmo juramento. Maria não bebia. E Lara?
Sim, ela bebia. Acabo de pensar que talvez, porque não seria
de se espantar se tivesse sido assim, Lara tivesse tirado a blusa na frente do
homem moreno de cabelos lisos e mostrado seus grandes seios, maiores do que os
de sua irmã, maiores e mais rígidos, até porque ela era mais nova, ela era mais
magra, talvez fosse mais bonita, e tivesse derramado cerveja sobre eles dois, e
os dois, os outros dois, que estavam trancados no quarto, enquanto Clara e
Jonas dormiam, e talvez – pensei agora – Maria estivesse no hospital, e talvez
ela fosse para o hospital de tempos em tempos, era uma mulher doente, se
esbaldaram, perdidos entre as montanhas que eram aqueles seios com cerveja e o
abismo que eram aqueles seios com o veneno que, talvez, nenhum dos dois tivesse
previsto que abriria a porteira para uma boiada que não poderia ser freada.
Estou com fome. Acho que vou comer agora. Eu tenho uma amiga
que às vezes janta comigo. Gosto dela. Ela também é uma pessoa especial. Também
porque existem outras pessoas especiais. Mas já me alonguei demais por hoje.
Estou com fome e não consigo pensar quando estou com fome. Sei que você deve
ter se perguntado sobre qual a relação que tenho e como é esta amiga, mas outra
hora falo dela.
22:40
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