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Sei que é tão simples começar a escrever: é só começar,
então comece agora. Estou cansada. Mental, fisicamente. Mas escrevo agora. É
minha sina escrever. Até chegarmos ao fim desta história. Li um material sobre
o grupo de vítimas de incesto sobre o qual Sarah me falou. Pensei que na história
de Clara – é apenas ficção, ou pelo menos assim o penso, mas baseada na
realidade – imaginei o homem alto e
moreno de cabelos lisos vendo ela brincar. Ele gostava de ver a pequena Clara
brincar em sua casa.
Do que ela brincava?
De trenzinho, de boneca? O que você acha? Sei que de tempos
em tempos ele enfiava o dedo na boca dela e a obrigava a chupar. Sim, é claro
que se ela fosse um bebê e ele fizesse isso, poderia ser um substituto para
bico, e ainda assim, discutível em minha opinião. Talvez ele fizesse isso mesmo
desde que ela era pequena, assim como – essa ideia me voltou agora – ficar mexendo
em sua vagina de bebê, com a desculpa de estar trocando suas fraldas. Mas ela
então não era mais um bebê. Ainda não era mulher, ainda não sei se chegou a ser
mulher. A história pode acabar antes. Até aqui ela era uma criança. E ele
colocava os dedos na boca dela. E o homem alto era alto – sei que parece
redundância, mas quero deixar claro que era um homem alto e forte contra uma
criança pequena. E houve uma vez em que Maria disse para ele não ficar enfiando
os dedos na boca de Clara. E ele deu um tapa nela. Maria começou a chorar. Ele
logo pediu desculpas, disse que não gostava que os outros ficassem querendo
ensinar como se devia educar uma filha.
Por “outros”, ele estava se referindo a mãe da criança.
Maria desculpou o marido. Ela desculpou, assim como
desculpou das outras vezes em que foi espancada e ele disse que aquela seria a
última vez, que nunca mais encostaria um dedo nela. As surras começaram a ficar
mais violentas depois que ele voltou a beber, e enquanto ele estava abstinente
creio que eram apenas empurrões. Não tenho muito claro em minha mente de
escritora iniciante as memórias dessa época.
Será que é inconsciente, assim como o fato de eu não
conseguir criar um nome para esse homem?
Será que é inconsciente eu mal lembrar o que fiz ontem, o
que já andei escrevendo neste projeto de história?
O caso é que desta noite, de Clara brincando, o homem
enfiando o dedo em sua boca, dando um tapa em Maria, eu me lembro.
Quer dizer, eu consigo criar.
O homem deu um tapa em Maria depois que ela disse para ele
não colocar o dedo na boca de Clara. Depois ele pediu desculpas, ela aceitou. E
foram para o quarto. Ele estava excitado. Ele se excitou com Clara e descontou
em Maria.
Filho da puta.
Ele descontou em Maria, mas no fundo o que ele queria era
fazer em Clara.
E aquela foi apenas uma noite.
Ele não conseguiu ter Clara do jeito que queria.
Naquela noite.
Mas foi apenas uma noite.
Depois dela viria outra noite, outro dia.
Outro dia, mas não outra vida.
Parece que há fumaça em meus pulmões e um monumento de
chumbo em meu peito. Suspiro. Outro dia, mas não outra vida.
Quem sabe, outro dia. Outra vida.
20:57
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