Segunda-feira,
2 de março de 2015
23:56
Estou
com problema de memória. Isso é óbvio, mas não me refiro a ter esquecido tudo
antes do acidente ou seja lá o que foi que tenha me trazido a este lugar. Me refiro
ao meu cérebro, ou aquilo que restou dele, estar se apagando mais a cada dia, e
tive medo, não sei se pela primeira vez ou já tinha pensado nisso, de enlouquecer.
Quero dizer, enlouquecer antes de chegar no fim desta maldita história e quanto
mais me convenço de que sou capaz de seguir sem escrever, o fantasma de Clara
volta para me assombrar.
Sim,
faz dias que não escrevo e jurei de novo que nunca mais ia escrever esta
história horrível, terrivelmente mal escrita, um lixo que jamais será lido –
mas então Sarah me para no corredor e pergunta se estou escrevendo. Ela deve
saber que não. Não imagino como, mas esses psicanalistas veem coisas que não
nos contam, não até a gente descobrir por nossa conta, ou admitir o que
fingimos que não está lá.
Acho
que odeio ela por isso.
Todas
as nossas relações são baseadas em amor e ódio, ela me diz, então talvez ela
ria escondido de mim.
Maria
Sozinha No Canto Da Sala Com Todos Rindo De Sua Cara.
Não
soa muito bem, mas pelo menos acho que Claudius, o Dr. Abusador, talvez esteja
ficando escondido em algum canto desta história – e isso talvez seja bom, ele
não ter mais aparecido em minhas livres associações. Sarah disse que a angústia
é o afeto que fica vagando dentro de nós sem encontrar um porto e quando
dizemos que não sabemos o que estamos sentindo, e de alguma forma isso é
desconfortável, isso também é angústia.
Portanto,
Maria Angustiada Que Escreve Para Se Livrar. Sem ter nada para escrever, como
sempre, mas de alguma forma confiando que meu cérebro febril vai soltar as
palavras certas. Só tenho que escrever, não pensar.
Mas
tive uma visão bonita hoje. Na verdade, não foi hoje, mas registro agora. Vi
elas três da minha janela: Cheshire, Blossom e Acácia. Elas estavam em volta do
chafariz que Cheshire adora. Fiquei observando aqui de cima. Cheshire falava e
ria, Acácia também falava, mas não ria – falava com aquele misto de alegria e
tristeza contida dela, talvez uma loucura mansa. Elas duas pareciam duelar
enquanto conversavam. Pelo que conheço das duas, cada uma deveria estar falando
de um assunto diferente ou pelo menos ambas trocavam os assuntos muito rapidamente,
feito jabs entre lutadores de boxe. E Blossom seguia quieta, como sempre. Às
vezes tentava falar, e até conseguia, uma ou duas frases, e Cheshire e Acácia
continuavam o carnaval verbal que era tão típico delas, e Blossom se recolhia
de novo.
Fiquei
com saudades delas, olhando aqui da minha janela, presa dentro de mim, tanto
que me arrepio, tanto que quase choro.
E
então penso em Maria, a mãe, tocando seu piano para sua doce garotinha. Sweet
Lady Clara. Acho que tudo o que escrevo aqui, madrugada após madrugada, é sobre
Clara. É sobre o piano. Sobre Maria, a mãe que se perdeu no tempo.
Talvez
eu escreva para dar paz aos seus espíritos.
Não
sei de onde veio essa frase, apenas escrevo o que me vem à mente em tempo real.
Talvez
elas não tenham morrido ou talvez sim, e isso que escrevo aqui, às vezes em um
desespero, é uma tentativa de mudar o passado. O final desta história. A cada
madrugada, a cada vez que chove. O tempo talvez esteja para mudar. E isso me
deixa feliz. E se é isso que se chama esperança, então talvez possa reacender
este espírito errante aqui. E ver que aquelas três garotas, lindas em sua
loucura, em volta daquele chafariz, perdido aqui no meio do pátio, deste lugar
de onde falo, elas estão lá para mim. De alguma forma, elas vão estar lá me
esperando. Acácia em sua loucura inocente, Cheshire, talvez a mais louca das
três, a garota que passeia de pijamas e ri, e que rindo às vezes torna isso
aqui suportável, embora também eleve o nível de insanidade que ronda em volta
de mim, e Blossom. Sempre quietinha, pronta a largar um jab ou outro quando menos
se espera. Elas vão estar lá esperando por mim.
Como
Maria, a mãe.
Como
Clara.
Como
o piano que deve continuar tocando.
A
espera de mim.
00:26
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