14 de junho de 2015
22:39
Uma nova madrugada
está para começar. Cris queria ouvir música, mas não deixaram. Muito tarde,
disseram. Então ela veio para mim e pediu um presente de aniversário. Ontem foi
aniversário dela, e já que sou a Maria Que Escreve Cartões De Aniversário Nesta
História Horrível Que Não Quero Que
Ninguém Leia, ela pediu para eu escrever sobre o aniversário dela. Como uma
prova de amor, acrescentou ela.
Fiquei sem saber o
que responder.
Mas decidi me
trancar aqui de novo, ela ao meu lado – desde que não fale. A única que deixo
ficar perto enquanto escrevo. Ela só disse que queria que eu escrevesse que ela
estava bonita. “Ela estava bonita”. Acho que, ontem, ficou um pouco triste
quando poucas de nossas colegas-zumbis, neste hotel de mortas-vivas, lembraram
do seu aniversário. Cris colocou lápis nos olhos e tique-taques.
Ela estava bonita.
E agora não escrevo
só por escrever.
Que ninguém me leia
– este é o meu segredo de Mim para Você.
O caso é que
ficamos só nós duas no refeitório com pouca luz e como quase ninguém a
felicitou (embora, sim, lembraram dela, mas talvez não do jeito que ela queria
e, ouso dizer, merecia), comecei a cantar parabéns bem baixinho em volta da
mesa, e em vez de batermos palmas, estralei os dedos. Ela gostou. E me convidou
para dar uma volta hoje. Fomos. Caminhamos pelo campo, no frio, passamos pelo
chafariz que Cheshire gosta e, antes de sairmos, ela esticou a mão para mim.
Vamos? perguntou ela. Acho que nossas colegas já tinham ido dormir – na verdade,
saímos escondidas, porque esses passeios noturnos não são muito bem-vindos.
E caminhamos pelo
campo, respirando esse sereno lindo, de mãos dadas.
- Tem certeza que
não gosta de mulher? ela perguntou, enquanto dávamos a segunda volta pelo
campo.
Baixei a cabeça e
meus olhos foram se arrastando pelo chão junto comigo.
- Eu não sei do que
gosto. Mas às vezes, disse eu, apenas queria fugir de mim sem ser encontrada.
Ela sorriu.
- Então gostamos de
ir para o mesmo lugar. E está bom assim.
Sorri, ou acho que
sorri. Na verdade, não sei bem como me senti em relação a isso. Mas ela estava
feliz.
E eu também.
E isso basta.
- Você acha que um
dia vamos sair? perguntei, enquanto caminhávamos pela noite fria, em círculos
no pátio lá embaixo.
- Um dia, acho que
vamos.
Lembrei de algo que
a Chica Tortoni me disse esses dias. Que seus pais eram esquizofrênicos, ou um
deles, não lembro bem, e que filhos de pais esquizofrênicos têm 10% de probabilidade
de desenvolverem a doença. E então ela acrescentou, e notei carinho em sua
fala:
- Não somos loucas,
Maria.
Quem diria, restou
carinho depois do fim de tudo.
Depois do incêndio.
Depois do
terremoto.
Aliás, li uma frase
em um livro de um filósofo chamado Cortella, citando um carinha chamado Robert
Mallet, que dizia:
“O que mais desespera não é o impossível, porém, o possível não alcançado”.
Esse Mallet
estudava terremotos, que deve ser uma profissão interessante.
Queria que
alguém me explicasse este terremoto aqui de dentro.
Sei que decidi
dar esse livro de presente para Cris. E quando ela perguntou de onde eu tinha
tirado dinheiro para comprar um livro, respondi apenas:
- Eu roubei da
biblioteca.
Ela apertou o
livro no peito e disse:
- Então eu
aceito. Livros roubados têm um gosto especial.
Sorri.
Espero que ela
tenha gostado de seu aniversário. De nosso passeio. Do livro.
Não sei que
música Cris gostaria de estar ouvindo. Mas ouço em meu pensamento, a melodia
que tento fazer unir estas palavras mal escritas em busca de um sentido. Pensei
em dizer para Cris algo como “por favor, diga que você não é minha irmã”, mas
talvez, de alguma forma, isso fosse estragar a mágica, a mágica que procuro
quando tento capturar o piano que se perdeu no tempo, e a vida que quer voltar
a ser vida.
Esse Cortella
disse que a gente tem que se tornar necessário.
Não sei se algum
dia já fui querida, amada. Necessária.
Mas neste começo
de madrugada, penso que de alguma forma, sou um pouco necessária para Cris.
Não importa o
nome que se dê para isso, porque no fim é apenas um nome.
E não me importo
com nomes.
Eu que sequer
lembro do meu nome.
Talvez não goste
de mulher. Nem de homem. Não quero falar de sexo.
Apenas queria
dizer que, de alguma forma, me senti necessária.
Maria
Necessária.
E isso me deixa
feliz.
E me faz querer viver
mais um dia.
Obrigado, amada.
23:12
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