sábado, 10 de outubro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 185


10 de outubro de 2015

00:00

Queria nunca mais ter que escrever.

Queria que passasse a dor.

Mas ela passa, e volta. Então preciso escrever. Uma nova madrugada começa. Tem chovido tanto. É bom poder escrever sem ser lida, sem ser encontrada. De novo a mágica acontece, e eu que jamais tenho algo realmente importante para dizer, parece que sei lá de onde, algo vem povoar minhas frases. Vem me fazer sonhar com ela: Lady Clara.

Que é no fim das contas o motivo de eu estar aqui.

De onde tirei isso?

Meu deus, a mágica acontece e não consigo parar de escrever. Meus dedos estão feito um trem em alta velocidade e não sei o que há do outro lado desta estação. Por isso escrevo. Vou esvaziando meu armário sempre tão cheio e sem saber o que escrever, caminho. A procura de Clara, perdida no fim desta caverna. Talvez lá onde o riacho corre. Longe do chafariz de Cheshire, ela que costumava conversar com Blossom e Acácia lá embaixo. Por onde andarão neste asilo que assim que a noite entra porta adentro começa a silenciar? Blossom, que me mostrou desenhos. Que escreve, sei lá, confissões. Que escreve para si mesma. Feito eu, Maria que escreve para si, na esperança de que ninguém leia este monte de merda que escrevo aqui.

Mas de novo me volta a mente a proposta de Sarah, que às vezes consegue me deixar atordoada, em sofrimento psíquico como se já não fosse o suficiente, e parece que nunca é suficiente, e odeio ela por causa disso – e então ela me diria que se a odeio essa tal de praga que o velho tarado foi espalhar na América está funcionando. Meu deus, essa maldita livre associação também faz parte de mágica. Eu tinha começado a falar na proposta de Sarah. Acho que ela quer mesmo que eu fale da minha não-história para os outros. A história que faço de tudo para que ninguém leia, mas que talvez – meu deus, Sarah realmente me contaminou com suas loucuras – meu inconsciente desgarrado queira que seja lida.

Se odeio mesmo Sarah, talvez não seja ódio. Talvez seja sim, mas disfarçado de dor. Porque dói se não escrevo. Se fico tempo sem olhar para esta historiazinha da qual fujo sempre que posso.

Vi mentalmente Lara, magrinha, novinha. A titia que deu pro papai, titia bobinha talvez, jovem, cheia de vida, que poderia ter cuidado de Clara, pelo menos não ter se divertido com o cunhado no réveillon, ele que não bebia há dez anos. E ele, maldito seja, pensou que o champanhe que escorria pelos peitos de Lara era mais importante que as lágrimas que escorriam pelos olhos de Maria, internada no hospital em plena noite de réveillon.

Maria, a mãe.

Mamãe linda.

Mamãe triste.

Mamãe abandonada.

Feito a filha, triste, abandonada. Esquecidas.

O que aconteceu com Jonas? Ele sempre foi assim, esquisito, quietão, falava coisas sem sentido, olhava para o nada, via coisas? Ele era como o cara do Rain Man? Ou o cara de Uma Mente Brilhante? Jonas Michel, pensei de novo.

Então me canso de escrever. O armário está um pouco mais leve. Não sei onde estão minhas irmãs-zumbis deste asilo. Dormem, passeiam, namoram escondido por aí? Lembrei da pequena Daf e sua novidade. Será que ela vai trazer pinturas novas? E penso em Cris, neste começo de madrugada. Talvez ela, que me disse, meio dormindo, meio acordada, que me ama, também faça parte, assim como a escrita, das coisas que não consigo mais viver longe por muito tempo.

De alguma forma que ainda não entendo, a cada madrugada, chego mais perto de Clara. Não sei explicar, mas é como se eu sentisse a sua presença. Não sei se em espírito, porque como às vezes cogito que esta história termina em um incêndio e talvez todos morram no fim, não sei se ela morreu.

Como morreu, porra? É só uma história que estou inventando. Só uma historiazinha.

E de onde estou tirando ela, pareço ouvir a voz sem-vergonha de Sarah me perguntando.

Nesses momentos não é dor: odeio mesmo ela.

Então suspiro.

De onde estou tirando esta história?

O abismo se aproxima de novo. O trem segue rumo ao desconhecido. Entro em um túnel dentro de uma rocha gigante. Sinto o brownie com cheiro de infância, vejo as sapatilhas de Lady Ballet, o caderninho de Blossom. A risada de Cheshire, ela que também gosta de chuvas e trovões. O trem segue, curando. Sarando. Afinal, Sarah sara. O trem que não me deixa em paz que talvez me conduza a um lugar melhor. Mesmo com medo, eu, Maria Medrosa, sigo conduzida por este trem.
Então sorrio.

O trem rumo a próxima estação, do outro lado desta rocha sem fim, o fim do túnel.

Lá onde me esperam Clara e Maria, a mãe.

00:31

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