20
de outubro de 2015
21:33
Antes
que chova, vou escrever.
Tive
outra das aulas que Sarah ministra sobre essa gente louca que ela adora, e hoje
ela falou sobre uma tal de Mahler, que dizia que quando o bebê nasce está na
fase autista, durante o primeiro mês de vida, e ele só se importa com seu mundo
interno; do segundo ao quinto mês ele fica na fase simbiótica, que não sabe
exatamente o que vem dele e o que vem de fora; e lá pelo quinto, sexto mês... O
que acontece mesmo? Esqueci. Mas fico me perguntando: como essa Mahler sabia disso?
Chegava para o bebezinho e dizia: “fale mais sobre isso...”?
De
qualquer forma, se bem me lembro, ela disse que no primeiro mês de vida o bebê
ainda está em um prolongamento da vida intra-uterina, tipo, ele vai se portando
como se ainda estivesse dentro do quentinho, castelo todo-poderoso e seguro do
útero.
Que
nem esse onde estou, pensei agora.
Acontece
que nunca consigo criar uma infância tão infância para o meu bebê, Lady Clara.
Minha criança linda. Minha princesinha. A Garota Cheshire me levou para ver o
temporal que inundou tudo esses dias e abalou as estruturas do paraíso, mas por
algum milagre não derrubou nada aqui, tirando as árvores, talvez por esta ser
uma construção antiga, um hospital antigo, um asilo antigo, um cemitério
antigo, um campo para almas penadas antigo. Não importa, mas lembro que vimos
os relâmpagos que transformaram em dia a noite, que riscaram o céu, e a Cheshire
disse que era lindo aquilo.
−
Muito foda, foi o que ela disse.
E
depois acrescentou que tinha medo. Dafne me disse que aquela exposição de artes
para a qual Sarah tinha nos convidado, Festival Garotas Com Fendas, vai ser
adiada. Agora que até cogitei, no escondidinho do de dentro de mim, ou na
posição autista da Mahler, recém chegando do útero, mostrar um pouco desse
monte de bobagem que escrevo aqui, mas tudo bem. Talvez Sarah tenha intuído que
ainda não estou pronta.
Ainda
não estou pronta. É por isso que não termino esta merda de história.
Mas
antes que comece a chover, eu que só escrevo quando chove, e disseram que vem
outro dilúvio talvez ainda hoje, me veio uma imagem na cabeça. Não sei se é
invenção ou algum fiapo que escapou da floresta do meu inconsciente.
Maria
que olha pela janela em um dia de chuva.
Parece
uma foto interessante.
Mas
não é essa imagem a que me refiro.
Uma
garotinha em um dia cinza.
Um
dia cinza que chove.
Uma
garotinha caminha sobre a água, em um dia cinza, lindo feito um corte no pulso.
Lindo feito a vida que ainda pulsa.
Cris,
doce Cris. Que quer viver mais um dia. Como eu.
Às
vezes pensamos pensamentos ruins. Queremos passar para o outro lado, e então
decidimos ficar. Não podemos cruzar a ponte e depois decidir voltar atrás. Por
isso não vamos.
Ficamos
por aqui. Hoje.
Uma
garotinha em um dia cinza, caminhando pelo verde da grama. Emolduradas pelo
cinza do dia. Pelo cinza da vida. Maria Melancólica. Mas Maria Que Vive.
A
pequena Clara que gostava de se atirar nas poças de água e escorregar pelas
águas sobre as gramas, feito um bote rumo ao outro lado. Longe da dor. Me
arrepio quando escrevo, mas de novo: não consigo parar. Não podemos passar para
o outro lado, Cris. Não podemos, garotas. Temos que ficar aqui e fazer o melhor
com isso que sobrou da vida – e se é isso que se chama esperança, então somos
esperançosas. Talvez tenha sobrado muito mais do que consigamos ver. Dafne e
sua novidade. Cheshire e sua risada. Tanta gente que entra e sai, e não sei
como elas entram, nem saem.
Sabby,
Acácia, Blossom. O Garoto Skinner. A Srta. Vygotsky. Sarah, a Sarah que sara.
Escrevi
tudo isso e nem toquei no homem alto e moreno de cabelos lisos, Maldito Doutor
Abusador. Talvez ele esteja morrendo dentro de mim.
De
dentro dessa história.
Que
espera a próxima chuva. Assim como aquela garotinha linda, a Menina Mais Linda
Do Mundo espera. Um passeio pela chuva, por que não?
Talvez
esta história termine em um dia de chuva.
E
ninguém morra.
Mas
sei que Clara vai passear, e sim: ser feliz.
22:01
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