terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 190


1 de dezembro de 2015

21:25

A rainha perdida no alto do castelo volta à vida. Anoitece. Silêncio no asilo. Não tenho a menor ideia do que vou escrever – ninguém vai ler esta merda mesmo, para que se preocupar? Mas queria registrar que Cris saiu da ala das Meninas Que Voam Pelos Muros. Um dos médicos disse que não gosta da palavra “cura”, acho que mais ou menos como diziam – pelo menos vou escrever o que meu inconsciente dita neste instante – naqueles grupos que Claudius ia, que talvez a pequena Clara tenha ido, talvez Maria, a mãe, que sofria junto vendo o Sr. Doutor tomando uns traguinhos – mas ele não bebia. Ele voltou a beber depois de dez anos quando, em vez de cuidar de Maria, a mãe, internada em um hospital – parecido com este lugar onde estou, não posso deixar de mencionar – estava se divertindo com a cunhadinha jovenzinha, titia putinha que deveria ter cuidado da sobrinha. Lara.

Suspiro.

Sempre volto ao mesmo assunto: a pequena Clara. Sua mãe. Maria.

Maria, como eu.

Internada em um hospital. Como a doce Cris, que ficou na ala das Meninas Que Voam Pelos Muros.

Maria, a mãe, tentou se matar?

Meu deus, nunca tinha pensado nisso.

Será que foi isso que aconteceu naquele réveillon?

A pequena Clara também?

Sim, Lady Clara tentou. Meu deus, a coisa está voltando. Todos morrem no fim?

Como vim parar neste fim de mundo?

De novo, me volta o medo de enlouquecer.

O que soa irônico vindo de alguém neste fim de mundo.

Suspiro de novo.

Ouvi pelos corredores que Sarah está meio doente. Ela não ministrou a aula hoje. Fiquei na dúvida com aquele Lacan (quando acho que ela não pode vir com nada mais insano que o velho tarado, ela sempre dá um jeito de se superar), mas acho que ele falava em estádios do espelho, tipo assim: Clara vê outra Clara, Clara percebe que vê uma imagem de Clara, Clara percebe que vê a própria Clara. Mais ou menos assim. Quem diria, essas loucuras andam me contaminando, como se fosse possível piorar em um lugar desses.

Maria Psicanalista.

Meu deus, onde nós vamos parar?

Sei que Sarah, antes de adoecer, tinha liberado Cris para vir me ver. Aliás, talvez ela venha aqui daqui a pouco. Não entendi bem por quê, e se há mesmo um motivo (deve haver, esses psicanalistas do demônio não dão ponto sem nó), mas Sarah permite algumas regalias entre Cris e eu, tipo, visitas no quarto depois do horário permitido, jantar mais tarde, depois do horário oficial.

A história que não compreendo está se desenhando e ainda não consigo decifrar.

Penso em Lady Ballet, a pequena Daf. Tanta gente que entra e sai daqui e tenho dúvidas se elas existem ou são apenas frutos da minha imaginação, como talvez tudo o que escrevo trancada aqui. Dafne e sua novidade – estaria ela pintando como disse que ia fazer? Lembro que uma vez a Ballet falou em recaída, não sei por que lembrei disso agora. Todas temos coisas que queremos jogar fora, pensei agora. Coisas que entraram e devem sair. Vomitando ou escrevendo, que no fundo são a mesma coisa.

O Garoto Skinner.

Cheshire, que não vi mais em volta do chafariz, junto com Blossom e seu caderninho. Acácia, correndo de um lugar para outro.

Vou escrevendo e essa coisa que não consigo nomear – que pode ser dor, vazio, vida ou esperança – vai se ajeitando feito as melancias da carroça. Acho que é por isso que escrevo. Ainda não entendo qual a mágica que acontece que me faz cuspir, digo, vomitar essas palavras do de dentro de mim – e no fim algo acontece. Que pode ser uma luz, esperança, um sentido.

Um amor de mãe a espera de que sua pequena princesa volte.

Tenho vontade de chorar.

Mas sorrio.

Tudo é sobre ela. Sobre o piano. Sobre a chuva. Sobre o alto do castelo. O jardim, o chafariz. Um amor de mãe que jamais esquece a filha. Jamais abandona a filha.

Jamais abandona.

E resgata sua princesa das profundezas do pântano.

Uma mãe jamais abandona, jamais esquece.

Maria, mamãe linda.

Pequena Sweet Lady Clara.

Não sei mais o que escrever, mas sinto que cheguei mais perto hoje.

Um pouco mais perto.

De resgatar uma princesa.

21:55

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