Segunda-feira,
25 de abril de 2016
23:10
Mais
ou menos um mês que não escrevo. Me aqueço aos poucos. Choveu e choveu, pensei
em escrever, a chuva sempre convida. O tempo está mudando, o frio de volta.
Algumas garotas estavam comentando no corredor que do lado de fora destes muros
está havendo uma guerra política, parece que querem tirar o presidente ou a
presidente, falaram em uma revolução, e me toco que não tenho certeza de em que
ano estamos. Não que faça muita diferença, porque tenho que fazer alguma coisa
com esta vida da qual não lembro e se não lembro também ignoro o tempo em que
estou aqui.
Como
vim parar aqui, quem me mantém. A quem importa que eu esteja aqui. Já tive
alguém lá fora. Sei que tive. Tenho saudades, tantas que me fazem olhar para
meus braços e percorrer com os olhos devagar o caminho de algumas cicatrizes.
Aliás,
andei por aí neste asilo sem fim. Fui, mesmo sem avisar para Sarah, até algumas
outras alas. Talvez ela saiba que fui lá escondida, esses psicanalistas do
inferno não dormem no ponto. Conheci mais das Meninas Que Se Cortam, e algumas
Meninas Que Mataram. No começo, me trataram com indiferença, como se eu tivesse
que dizer a senha para entrar no clube. Mas assim que mostrei meus braços, elas
assentiram com a cabeça.
−
Seja bem-vinda, anjo.
Talvez
escrevesse sobre elas, pensei na hora, e na verdade penso que escrevo não mais
para mim, mas para as outras Garotas Com Fendas desta terra, que são várias. E
por algum motivo, nos encontramos.
Como
voltar para casa, não posso deixar de registrar.
Como
sempre, não tinha nada para escrever, como nunca tenho, jamais tive, e esta
mágica estranha da livre associação começa a movimentar meus dedos. E algo
acontece. Escrevo possuída.
Talvez
por um anjo, se for possível.
É
assim que as Meninas Que Voam Pelos Muros se chamam: anjos.
Esperando
voltarem para casa.
Falei
com Cris hoje. Ela está melhor. Não quis mais voar pelos muros, e confesso que
fico mais aliviada em saber disso. Tenho visto pouco as outras, mas Dafne
perguntou se eu estava escrevendo, a pintora – e agora mãe – dos dedos magros
que parece que vai se quebrar no meio, assim como Acácia, ela também, o sorriso
da inocência, da dor travestida de doçura. Sabby, a garota com pele cor de
leite desnatado e cabelos longos como feitos de um tapete, e que também escreve
para preencher suas fendas. Cheshire, o sorriso da loucura em volta do chafariz,
o Garoto Skinner, alegre e feliz como todos os gordinhos.
Até
esqueci que no fim das contas tudo volta para ela: a pequena Clara.
Estou
enferrujada, não sei mais o que escrever, mas lá fora venta, ouço trovões se
aproximando, talvez mais chuva, então devo continuar escrevendo.
A
dor vai ficando para trás, porque ela some, mas volta, e porque volta, tenho que
escrever até o fim desta história que nem história é.
Claudius
de aniversário, pensei agora. Maria, a mãe, Lara, a cunhadinha. Seus filhos
Clara, Jonas e – mesmo que ninguém soubesse – Marcos. Quem mais? Colegas
médicos, talvez. Não sei detalhes, Maria, Péssima Escritora. Mas ele comemorou
seu aniversário e talvez, por um dia, não tenha havido desgraça naquela casa. Um
só, mas já é um começo.
Brownie
está de aniversário no fim deste mês, deve ter ficado no meu inconsciente, que
imagino ser o celeiro de onde sai tudo o que escrevo. Penso no cheiro de
infância que a garota que anda em slow motion produz quando faz seus doces.
Maria,
a mãe, escrevia? Ela contava histórias para Clara. Clara escrevia, contava
histórias?
Seria
uma bonita fotografia, não? Ambas lendo e contando histórias uma para a outra.
Tocando piano e contando histórias em volta da lareira, aproveitando que o frio
está voltando. Uma história depois da outra.
Tipo
essa que estou tentando inventar.
Suspiro.
O
abismo se aproxima de novo.
Meus
braços doem. Minha coluna também.
Acho
que houve um incêndio. Me perguntei quem me banca aqui, algumas linhas atrás.
Pensei,
e não me pergunte de onde tirei isso, Sarah disse que era apenas para escrever,
sem pensar, sem omitir nada, mesmo que parecesse bobo ou absurdo, aliás, o
velho tarado diria que era para falar especialmente se achasse que era
irrelevante, então lá vai: alguém pode ter morrido, alguém que tinha bastante
dinheiro, e como herança devo ficar aqui até me lembrar, talvez até eu tenha
matado alguém, ou alguém ligado a mim morreu, e sei lá por que um dinheiro
apareceu para me manter neste lugar até eu encontrar o que me trouxe aqui, e
não sairei até terminar esta história.
E
a pequena Clara tem a ver com isso.
Touché,
Sarah.
23:42
Nenhum comentário:
Postar um comentário