Domingo,
27 de março de 2016
00:00
Dizem
– porque perdi contato com o mundo lá fora faz algum tempo – que hoje é Páscoa.
Ovinhos, chocolates, coelhinho – memórias da infância que não lembro. Cris, que
está por perto lendo algum trecho de livro – sim, a única que deixo ficar por
perto enquanto escrevo – disse para eu escrever hoje. O trato é sempre o mesmo:
eu escrevo, nem ela nem ninguém lê. Até porque não há o que ler. Não há
história, não há nada.
Não
há Claudius, não há Lara. E talvez não haja Clara, embora gostaria que ela houvesse.
Sim, gostaria que essa garotinha linda acontecesse. Vingasse, como no conto do
Machado de Assis.
Lembro
vagamente de ter cogitado de eu ter matado minha mãe e ter vindo parar aqui,
quando falei nas garotas das Alas Gradeadas. Mas algumas delas, em algum surto,
podem ter matado as filhas.
Sinto
vontade de chorar. E se eu já tive uma filha e matei, ou tentei matar, ela?
Será
que essa busca frenética pela pequena Clara, no fundo, é um símbolo disso?
Sarah
me contaminou com suas aberrações psicanalíticas – mas e se for algo parecido
com isso?
De
novo, a história se afunila.
Maria
Encurralada.
Sei
que o outono começou há alguns dias, e isso é bom. Não gosto de calor. Talvez o
fogo do inferno, ou o fogo do incêndio que me volta de tempos em tempos e que
talvez seja o fim desta história, tenha a ver com isso.
Um
incêndio em um dia de chuva.
Ouvi
dizer que existe por aqui uma ala especial, ou um canto especial, para as
Garotas Que Se Cortam, e já ouvi dizer que elas são muitas. Como uma tribo.
Talvez nem seja um lugar especial para elas, mas acho que elas se reúnem e se
comunicam feito maçons suicidas – e que
o passe é ter cicatrizes nos braços.
Eu
tenho. E tenho queimaduras. Acho que em algum momento eu pertenci às Garotas
Que Voam Pelo Muros, e as Garotas Que Se Cortam.
Mas
será que já tive uma filha, e se tive, o que aconteceu com ela?
Maria
Que Não Sabe O Que Escrever.
Maria,
a mãe, vivia internada em hospitais – talvez em um lugar parecido com este.
Maria tomava remédios. Se algum dia ela tomou mais do que devia e quis voar
pelos muros, para o Grande Salto Sem Volta?
Meu
deus, acho que sim. Talvez ela não tenha aguentado a dor de saber que o marido
comia a maninha, abusava da filhinha e... o que mais? Precisa haver mais do que
isso? Talvez haja mais, sempre existe algo mais nesta história de gato e rato
que nunca chega a lugar nenhum. Mas que aos poucos, bem aos poucos, avança rumo
ao penhasco. E ainda não decidi, como talvez Maria, a mãe, tenha mudado de
ideia na última hora, se vou pular também.
Talvez
não.
Hoje
não.
Hoje
eu só queria sonhar com a pequena Clara descobrindo um ninho cheio de ovos de
chocolate em uma cesta de palha no boxe do banheiro no domingo de manhã e Jonas
descobrindo outro cesto debaixo do tanque na área de serviço. E Marcos, que depois
iria passar o feriado com os primos, também ganharia uma barra de chocolate,
quem sabe todos ganhariam ovos recheados com amendoins, pintados e decorados
com fitinhas por Maria? Parece um final melhor para um feriado, e se esse
feriado já teve momentos ruins, em minha história – já que sou a dona dela e
escrevo o que eu quiser – eles foram apagados. E ficamos apenas com os sorrisos
das crianças, e seus dentes pretos de chocolate e se isso for um pedaço do céu,
porque deve ser mesmo, então é assim que quero terminar minha história.
Feliz
Páscoa, meus amores.
00:25
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