Terça-feira,
28 de fevereiro de 2017
23:00
O
piano volta em meu quarto. Sou a única a ouvir, eu sei, mas ele volta a tocar.
Tenho que escrever, porque estou morrendo e enquanto mantiver estas palavras
horríveis que jamais serão lidas, gritando uma a uma para saírem de dentro de
mim e conceder a elas algum tipo de céu – meu deus, que mágica é essa que
acontece, e essas palavras vão se encadeando como ditadas por um ser dentro de
mim? – de alguma forma, também fico viva mais um pouco. Mais um dia.
Estamos
terminando um mês, começando outro.
Aqui
na Casa houve uma espécie de carnaval, com algumas de minhas colegas se
divertindo com máscaras e comendo saladas de frutas. Colegas-meninos também.
Neste lugar onde o tempo parece não acontecer, porque sei que ele acontece de
uma forma particular para nós, todas e todos. Esta é uma parte diferente do asilo,
talvez do que eu estava acostumada. É um tipo de loucura diferente, mas é
também de uma beleza diferente.
Sempre:
linda feito um corte no pulso.
Existem
garotas da fita preta aqui também, mas elas estão mais camufladas. Conheço
minhas iguais, Meninas Com Fendas se encontram. E vi um ou outro braço esquerdo
com a fita preta de sobrevivente. Sobreviventes aqui na Casa também. Que
dançaram felizes em uma comemoração de carnaval, e foi como anjos dançando em
algum tipo de campo.
Sim,
anjos querendo voltar para casa.
As
meninas que voam pelos muros, que se cortaram – e de novo olho para minhas
cicatrizes e queimaduras – são anjos. Querendo voltar para casa.
Como
eu, a Maria que escreve e agora olha por uma outra janela, mais alta do que eu
estava acostumada quando escrevia.
Mais
perto do céu.
Mas
não vou pular.
Hoje
não.
De
novo, lembro daquelas reuniões que Claudius, Doutor Abusador Que Espero Que
Esteja Queimando No Inferno, costumava ir, antes de voltar a beber depois de
dez anos em abstinência quando estava com a Titia Gostosinha Putinha Cunhadinha
Lara.
Sei
lá por quê, antes de começar a escrever, e antes do piano soar de novo em minha
mente, em minha memória, em meu coração, em meu sonho, meu deus, de onde estou
tirando esta história? me lembrei de algo que Sarah disse em uma de suas
últimas aulas, mais um desses pedaços de pão que estes psicanalistas do inferno
vão atirando no chão para que nós, através da dor e da raiva, tracemos o
caminho de volta.
Maria
que quer voltar para casa, pensei agora.
Juro
que não tinha pensado na fábula. Nunca me programo para escrever. E então algo
acontece. Desde a primeira linha, a primeira frase. Apenas vou escrevendo
enquanto escuto o piano.
Sim,
parecido com o piano que Maria, a mãe, tocava para sua pequena Clara, sua
filha, seu universo, seu tudo, sua vida.
Sweet
Lady Clara.
Tudo
volta para ela, não é mesmo?
Talvez
tudo seja sobre ela.
A
pequena Clara.
Que
se perdeu e que tento encontrar dentro de mim.
Por
que dentro de mim? me pergunto.
Vou
deixar para Sarah interpretar isso que ela chama de atos-falhos, esses
psicanalistas sempre acham que nada é o que parece ser.
Bom,
talvez não seja mesmo.
Mas
dei toda essa volta para dizer que me lembrei de uma coisa que Sarah falou em
uma de suas aulas:
—
Psicóticos têm problemas com aniversário, porque a falha está na origem.
Confesso
que não entendi muito bem, mas anotei em algum lugar para perguntar. A origem,
ela quer dizer infância, suponho. Problemas com aniversário.
Você,
para quem nunca mais me dirigi, talvez tenha se perguntado: quando é meu
aniversário?
Existem
aniversários nesta história. Houve alguns aniversários no asilo. E escrevi
sobre eles. Mas... quando é o meu?
Eu
não lembro, como não lembro sequer do meu nome inteiro, como ainda não lembro como
vim parar aqui.
E
se tudo isso for um sonho? me pergunto de novo.
Problemas
com aniversário porque a falha está na origem.
Sarah
sabe como termina a história da pequena Clara. Ela sabe quando é meu
aniversário. Mas ela não vai me contar, maldita.
Por
que não estou pronta para saber?
Porque
sei e não sei que sei, e não estou pronta para saber que sei, já que um trauma
é uma descarga em nosso psiquismo grande demais para darmos conta e por isso o
afeto fica recalcado em algum lugar do nosso inconsciente, e por isso
esquecemos, é isso?
Ela
não vai me dizer. Odeio ela por isso, mas de uma forma que talvez não consiga
ver, também – no fundo, lá no fundo do fundo de mim mesma – também amo ela por
me proteger.
Feito
uma mãe.
Meus
dedos param. Tenho vontade de chorar. O abismo se aproxima de novo. Um novo mês
está para começar. Águas de março, dizem eles. Que da próxima vez que o céu
chorar, que ele traga renovação, peço eu. Que ele traga um pouco de paz, ó,
deus das Meninas Com Fendas.
Não
sei se trará, mas um fiozinho de esperança apareceu. Pode ser apenas um pingo
de chuva. Pode ser apenas mais uma ilusão. Mais um corte no pulso. Mais uma
borboleta desenhada justamente para que não haja corte algum e que – suspiro –
ninguém voe pelos muros neste março que está começando agora. Pode ser tudo
isso ou nada disso.
Tudo
que sei é que um anjo lindo acaba de me abanar.
E
se esse é o mais perto que vamos chegar do céu hoje, então que seja.
23:38
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