Sábado,
1 de abril de 2017
Faz
mais de mês que não escrevo. Não que alguém fosse se importar. O piano volta em
minha mente, mas há guitarras junto hoje. Alguém nos confins do asilo estava
ouvindo de novo Type O Negative – reconheci pela voz de Peter Steele. Parecia
ser uma música que falava de Deus, de Jesus, de uma mulher cristã. O piano
triste e lindo, feito um corte no pulso, cinza feito um coração apaixonado –
cinza é minha cor; cinza de paraíso. O outono começou e talvez o cinza tenha me
trazido de volta.
Cinza
feito um sonho bom.
Na
noite passada, aqui na Casa, que é um lugar à parte dentro do asilo, e que fica
no alto de uma espécie de colina, cercada por muros e alguns jardins – sei lá
por quê, me lembrei que isso aqui também poderia ser um chiqueiro ou um lugar
para deixar leprosos longe dos outros – tivemos uma espécie de comemoração. Ou
ritual, não sei. Tivemos a permissão de dormir mais tarde, enquanto algumas
pessoas ficaram de plantão nos corredores. Não me importo muito com permissões para
dormir tarde, sou a Maria Noctívaga Por Natureza, mas aqui – diferente das Alas
das Grades, como já devo ter escrito, parece que o tempo corre em outra batida.
Tenho irmãos e irmãs-zumbis que parecem feitos de borracha. Eles não conseguem
parar em pé, e babam por cima da roupa quando estão comendo. Eles gritam.
Eles
são amarrados com faixas nas camas.
Mas,
depois que jantamos ontem e fomos dormir, e a maioria de nós tomou seus remedinhos,
a coisa se acalmou. Antes disso, houve brincadeiras, houve teatro, houve
piadas, houve música. Houve alegria.
Depois
houve solidão.
Consegui
ir até a escada que vai da Casa até o pátio – senti saudades do chafariz que
Cheshire tanto gosta, e que está em uma parte mais distante do asilo – e olhei
para o céu. O frio está voltando aos poucos. Muros, piscina, grades outras. Flores.
Jardim.
O
caso é que enquanto as Meninas Que Vivem Naquela Parte Do Tempo Que Não Se
Encaixa Neste Tempo adormeceram, não consegui dormir. Os guardiões do corredor
ficaram cochichando, com uma luz distante acesa – que entrava pelas frestas, barulho
e luz.
Então
você surgiu no corredor, talvez tenha se levantado para ir no banheiro, porque
me imaginei contando a história da pequena Clara, resumindo para mim mesma –
Maria, a mãe, casada com Claudius, médico alcoólatra que voltou a beber depois
de dez anos em abstinência, que batia em Maria, abusava da filha deles, Clara,
tinha um caso com Lara, sua cunhada, e um filho não assumido com ela, Marcos.
Também era pai de Jonas, filho de Maria. Havia duas crianças legítimas, Clara e
Jonas.
E
você me perguntou no corredor:
—
E se houver uma terceira criança?
Me
arrepiei como nada havia feito até então. Não Marcos, mas uma terceira criança.
Filho
ou filha de Claudius e Maria.
Então
você sumiu no corredor e voltou a dormir.
Continuo
escutando o piano e agora não sei mais o que escrever.
E
se houver uma terceira criança?
Meu
deus, como vim parar aqui?
Aqui
na Casa também existem meninas com a fita preta. Vi os laços pendurados em seus
punhos, a assinatura das Meninas Que Se Cortam, e como há desenhos espalhados
por aqui – como atividades a serem feitas, tipo por criação ou um exercício
para a escola, e só agora percebo isso – notei que há borboletas desenhadas. As
meninas que desenham borboletas para não se cortarem ou não voarem pelos muros também
estão por aqui.
Somos
todas Marias.
Meninas
Com Fendas se entendem.
Suspiro.
Algum
dia sairei daqui?
E
ir para onde, me pergunto.
Voltar
para casa, talvez, mas o dia em que descobrir para qual casa voltar talvez seja
o dia em que me abram a porta da frente.
Uma
sentinela dos corredores bate em minha porta, diz que já é tarde.
Odeio
quando me interrompem, porque interromper a escrita é interromper a vida. E
ambas devem seguir.
Ouço
a voz de Peter Steele e agora um solo de guitarra que já nem sei mais se
existiu mesmo ou é criação minha. Sarah diria que se é criação minha, de alguma
maneira existiu. Ah, psicanalistas e suas charadas.
Estou
cansada. Mas a noite vai seguir. Um novo mês está começando. Anotei algumas
frases que são como sinais para eu tentar desenvolver algum tipo de conexão
nesta história que nem história é.
Ou
talvez, como ouvi esses dias, na psicose a história nunca termina.
Então
você se pergunta se não termino esta história porque não quero, já que – de uma
forma que ainda não consigo entender – já sei como ela termina.
Talvez
consiga. Só não consigo suportar.
Quando
conseguir isso, se chegar esse dia, então sim: poderei voltar para casa.
00:19
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