Sábado,
29 de abril de 2017
23:30
Faz
frio no asilo. Mesmo assim, saí um pouco aqui da Casa e caminhei pelo campo lá
embaixo. Senti o frio, a umidade, a noite. O piano voltou para mim. Não sei
mais se foi sonho, delírio, vontade: parecia a música que falava na mulher
cristã, ouvi as teclas, a voz de Peter Steele, explicando toda a dor e o amor
do mundo.
Neste
asilo sem fim.
O
caso é que, antes do frio, este frio mágico que amo, caminhei por aqui. Tinha
me esquecido como este lugar é grande, como há outros prédios, janelas, grades,
quase apartamentos por aí. Queria ver de novo o chafariz que fazia Cheshire
dançar e sorrir, vestindo seu pijama, mas fui até a ala das Meninas Que Voam
Pelos Muros. Pelo visto sou mais conhecida do que imagino pelas minhas irmãs-zumbis,
porque senti que olhavam para mim e comentavam.
Ouvi
trechos de um tal jogo da Baleia Azul, e uma delas jogou esse jogo. O último
desafio, depois de coisinhas como subir em um prédio alto e cortar as palmas das
mãos – também passei pela ala das Meninas Que Se Cortam, notei várias com a
fita preta no braço esquerdo, mas poucas com as borboletas desenhadas no corpo –
e o desafio final é se matar. Ouvi uma das garotas que jogou esse jogo e
conseguiu sair antes do fim porque alguma boa alma, suponho, entrou em contato
com ela, de forma anônima, e disse que ela valia a pena.
Valemos
a pena, garotas.
Talvez
essa seja a lição que temos que aprender.
Sei
que ela conseguiu sair do jogo a tempo, sem ter as reprimendas que disseram que
ela ia ter caso o fizesse, e ela falou para as outras não entrarem nessa
roubada.
Uma
ou outra concordou, mas vi cabeças acenando, mais por curiosidade do que por
concordarem, no sentido de que ficaram pensando: por que não?
A
doença não tem cura, lembrei, e talvez Claudius tenha ouvido isso em algumas
daquelas reuniões que frequentava antes de voltar a beber depois de dez anos em
abstinência, quando estava se divertindo com a cunhadinha Lara em uma noite de réveillon
– quando deveria ter cuidado de Maria, a mãe, internada no hospital.
Maldito,
filho da puta.
Doutor
Abusador, espero que esteja queimando no inferno.
Se
existe mesmo uma mágica que me faz escrever o que escrevo, e só pode existir
porque jamais sei o que vou escrever antes que as palavras saiam de mim, vindas
não sei de onde, acho que lembrei de Claudius, pai de Clara, porque lembrei que
Sarah disse que havia na internet um projeto chamado Pode Gritar, com relatos
das meninas que passaram pelo que a pequena Clara passou.
Em
algum momento, Claudius deve ter dito para Clara, como talvez já tenha escrito
aqui, que ninguém ia acreditar nela, não havia nada de errado naquilo, era
apenas um pai amando sua filha, não conte para sua mãe, se você contar ela não
vai acreditar, ninguém vai acreditar, você é uma criança, um dia você vai
entender.
Talvez,
e essa é a minha dúvida enquanto escrevo: a pequena Clara tenha entendido.
Não
sei se tarde demais.
Não
sei se ela falou.
Não
sei se ela escreveu.
Me
arrepio.
Ela
pode não ter falado, porque não podia, porque não conseguia falar. Quero dizer
a ela: conte sua história, pequena Clara.
Escreva,
se você não consegue falar.
Ó,
meu deus.
Escreva,
se você não consegue falar.
Conte
sua história, pequena Clara.
Conte,
que um dia o mundo vai ouvir.
Se
não puder ouvir, que leia.
Feito
mensagens lançadas ao mar. Ou do alto do castelo, doce princesa.
Ou
do alto do quarto de um asilo frio.
E
um dia: a dor vai passar, meu amor.
23:57
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