30
de setembro de 2017
23:06
Faz
tanto tempo que não escrevo. Acho que uns dois meses. Mas hoje deu vontade de
escrever, embora – como sempre – eu não tenha nada para falar. Esses dias Sarah
me falou sobre a exposição do Queermuseu e da polêmica que gerou por mostrar
umas imagens de famílias.
Não
posso dizer como a minha, porque não lembro da minha.
Mas
de famílias ou de garotas ou de pessoas que talvez se enquadrassem na história
da pequena Clara. Pelo menos na família em que papai Doutor Claudius brincava
de médico com a filhinha Clara, batia na esposa Maria – sim, o mesmo nome que o
meu – e comia a cunhadinha Lara, com quem teve um filho não assumido, Marcos.
E
havia Jonas, filho de Claudius e Maria, a mãe.
Não
sei qual o sentido da arte. Uma das zumbis daqui, talvez tenha sido Daf ou
Sabby, porque elas também pintam e escrevem, disse que a arte desacomoda.
Lembro de Sarah ter dito que a psicanálise também desacomoda.
Ela
falou que o velho tarado dizia que ninguém mente. Que quando alguém diz que não
era bem aquilo que ela queria dizer, é porque era exatamente aquilo que ela
queria dizer. O inconsciente é mais poderoso do que se imagina, e lá não há mentira:
a gente quer e finge que não quer. Mas não pode enganar.
Tipo
assim, se a gente quiser colocar sentimentos no cantinho da sala, e deixar de
castigo, eles voltam.
Feito
memórias que a gente não consegue apagar.
De
onde tiro a história da pequena Clara?
Suspiro.
Mas
encontrar um sentido na dor, mesmo que eu não entenda de onde ela vem, nem para
onde ela vai, talvez já seja um bom motivo para escrever estas bobagens que
jamais serão lidas. Talvez os espíritos anônimos das Meninas Com Fendas que,
suspeito, me leem quando durmo, precisem descansar e para isso também preciso
continuar tentando contar esta história.
Que
nem história é.
Apenas
um corte no pulso, e de novo olho para as cicatrizes em meus braços.
Fazia
tempo que não pensava no incêndio, que talvez seja o fim disto tudo.
Como
vim parar neste asilo?
Sei
que passei de novo pelo Corredor Eterno, onde pouco tempo atrás eu estava recebendo
coisinhas intravenosas e lá fiquei ao saber que o bichinho que mordeu Lady
Brownie me mordeu também, e agora sou a Maria Em Slow Motion, caminhando
devagarzinho. Parando aos poucos. Bem os poucos. Feito uma vida chegando ao
fim, com pernas queimando por dentro, como se não bastasse meus braços e suas
queimaduras.
Uma
vida chegando ao fim, mas que insiste em continuar caminhando. Em slow motion,
sim, mas sempre em frente.
Sou
a Maria Que Quer Estar Viva.
O
piano que jamais saiu dentro de mim. Ele toca enquanto escrevo.
Lindo
feio um corte no pulso.
Encontrar
um sentido na dor.
O
piano que chega aos meus ouvidos e toma conta de mim.
Feito
um abraço de mãe.
Feito
Maria abraçando sua princesa Lady Clara.
Tenho
vontade de chorar quando escrevo isso.
Posso
ver Maria, a mãe, tocando o piano de cauda negro, sobre o tapete branco da
sala, em sua casa que parecia um centro comercial de tão grande. Maria tocava
para sua filhinha linda.
De
novo, tenho vontade de chorar.
Mas
preciso continuar. Chorando ou não, caminhando ou não.
O
Corredor Eterno fez sua mágica em mim, e tenho que fazer minha mágica e
descobrir com termina a história da pequena Clara.
Talvez
em um incêndio.
Talvez
não.
Talvez
ainda possa mudar o fim da história, porque sou a Rainha Todo-poderosa e soberana
em meu castelo. Que não sabe o que fazer, Maria Perdida.
Por
isso escrevo.
Enquanto
o piano continuar tocando, devo continuar escrevendo.
Talvez
não seja nenhum absurdo retratar cenas assim na arte. A vida é absurda. Se a
arte recria a vida, então recriemos esta vida que não basta. Se ela não pode
ser, que passe a ser – e encontremos um sentido na dor.
Na
dor da pequena Clara, que é a mesma minha, e talvez sua, ó espíritos errantes
das Meninas Com Fendas. Meninas Que Voam Pelos Muros, Meninas Que Se Cortam.
Porque no fundo somos todas uma só. E quero mais que tudo libertar vocês, como
a mim mesma, dentro deste Asilo Eterno.
Do
qual não sei se sairemos um dia.
Mas
que, enquanto o piano segue tocando e iluminando meus cantos escuros, abriga
uma saída. Sim, no fim de tudo haverá amor. É o que mais desejo para mim e para
você.
Dançaremos
abraçadas. Feito Lady Brownie dizendo bonjour, bonjour, naquele sonho que tive.
Um
sonho bom.
Sonhei
com você hoje, embora ainda não nos conheçamos.
E
foi um sonho bom, embora eu não me lembre.
O
velho tarado disse que a gente não lembra que lembra.
Mas
está lá.
Onde
está o amor, onde está a família que quero encontrar. Está tudo lá, no porão do
dentro de mim.
Canso
fácil. O bichinho da slow motion me faz parar, escrever cansa, pensar cansa.
Mas
sei que escrevi e escrevi e ainda não disse o que queria dizer. O abismo se
aproxima de novo. Penso em uma exposição para a pequena Clara. Daf disse que
tinha pintado novos quadros de Maria, a mãe, pegando a pequena Clara pelas
mãos, talvez girando ela no ar, brincando com seu nenê, e acho que nenhuma
delas tinha rosto.
Qual
é a cor do cabelos dos personagens que tento descrever? Como é o rosto de
Maria, a mãe? De Claudius, esse homem que demorei tanto a batizar? Lara, Jonas,
Marcos? Conheço apenas minhas irmãs-zumbis porque vejo elas, e mesmo assim elas
aparecem e somem por essas alas e quartos e grades e tudo mais pelo que tenho
passado.
Anjos,
diriam as Meninas Que Voam Pelos Muros. Somos anjos querendo voltar para casa.
Mas
ainda não é hora. Sei que no tempo certo, estaremos juntas, você e eu. E haverá
amor.
Você,
com quem já estive ou estarei no futuro.
De
onde tirei isso?
Não
sei, Sarah disse que era apenas para escrever, sem pensar, sem censura, feito
livre associação. Meus dedos cansam. Acho que por hoje está bom. Chegamos mais
perto do abismo.
Mas
também chegamos mais perto de algo que talvez se chame amor.
Então
suspiro, porque sei – agora eu sei – no fim de tudo haverá amor.
23:49
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