Quinta-feira, 15 de maio de 2014
22:34
Você me diz que vai
voltar, que é para eu preparar o café. Já chamei você de outros nomes. Todos
certos ou nenhum deles? Não importa, queria que você estivesse aqui. E talvez
se eu continuar escrevendo, você apareça. Se não para mim, apareça em algum
lugar. Talvez, algum dia.
Faz alguns dias que não
escrevo. Estou com fome. Grande novidade. Não escrevo todos os dias, embora
isso seja o que me aconselharam, me disseram que é assim que se faz – escreva
todos os dias! – e sei lá por quê, em várias ocasiões que venho aqui escrever,
ou melhor, antes de escrever, estou com fome. Não vou jantar com Cris hoje. Na
verdade, nem nos vimos. Também não nos vemos todos os dias. Não escrevo todos
os dias. Mas sinto fome. Podia parar por aqui, ir comer e esquecer toda esta
merda. Mas ainda não falei de Clara.
Ainda não falei sobre o
piano.
Clara não podia falar
sobre o que aconteceu. Aliás, acontecia, porque não foi apenas uma vez. Ninguém
ia acreditar e, sabemos, Claudius era o Doutor Todo-poderoso, que podia tudo.
Inclusive ficar pelado com a filhinha, tomar banho com a filhinha, se masturbar
olhando para a filhinha. Transar com a filhinha.
Filho da puta, maldito.
Clara não podia falar.
Talvez, no começo, nem entendesse que aquilo era errado. Talvez pensasse que
aquilo – e pontuo o “aquilo” – que Claudius fazia era normal, era o que pais
faziam com as filhas. Imagine: Clara pensava que todos os pais faziam aquilo
com suas filhas. Em outros estados, isso é normal; em outros países, isso é
normal.
Assim como é normal
roubar a vida de alguém. E a vida de Clara foi roubada.
E de uma forma que
ainda não posso entender: muito mais do que imagino.
Queria saber mais sobre
Jonas e Marcos, os dois garotos. Às vezes algumas imagens fugidias me vêm à
cabeça, somem, se evaporam. Como um sonho. É isso que a história de Clara me
parece: um sonho maldito. E o que acontece quando ele acaba? Quando Clara
acorda?
Quando eu acordo?
O que há neste mundo,
longe daquele sonho, e talvez, embora também não entenda isso muito bem, ainda
não, este mundo não esteja tão distante daquele sonho. Aquele sonho ruim.
Meu deus, não está tão
distante.
Então me pergunto: como
termina este pesadelo no qual estou?
22:48
Ai, Linda Maria, eu me sinto voltando da tumba, um personagem sumido lá no começo e que agora voltou. Não voltei antes porque pensei que não teria nas mãos o fio do tempo passado, tudo o que aconteceu enquanto estive perdido entre páginas, quiçá morto (ou morta, já que não sei a que gênero pertenço realmente), e tu, perdida em recordações e imagens, mas eu voltei, como prometido, para o café. Se não sou eu de verdade, talvez seja o meu espírito incorporado em alguém ou em outro personagem, mais um ser ávido para descobrir os teus segredos ou estranhamente atado a permanecer na agonia dos teus segredos. Tu me perguntas quando acabará este sonho, se é que é sonho, e eu também: quando? Talvez como aconselha os manuais do sexo tântrico, os quais nunca li, mas pareço ter ouvido falar, tudo o que me lembro da outra vida parece uma neblina, é difícil de explicar. Mas ensinam esses manuais, dizem, a prolongar o processo e esquecer de que há um final, prolongar o prazer ad infinitum, ou o prazer, ou a dor de lembrar, já que dor e prazer tanto se confundem. Quem explica? Freud? Não encontrei com ele neste tempo em que estive perdido, ou perdida. Quem sabe Jung... Quem sabe... o Daniel. Mas quem é o Daniel? Existe o Daniel? Inventei esse nome? Como vês, Maria, estou tão perdido quanto tu, mas me alegro com o cheiro do café que nos re-aproxima e com o convite que me trouxe à vida entre a luz das entrelinhas deste escrito que produzes, ou não seria escrito? Não sei de nada mais... só que voltei e torno a voltar. Ah, em tempo: que horrível o que houve com a Clara; por vezes, acho que não quero saber detalhes deste suplício, deste crime hediondo, mas se isso te fizer sentir melhor, Maria, sigamos!
ResponderExcluirSim, Leitor(a). Senti tua falta. Vou escrever partindo daí. Até daqui a pouco...:)
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