segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 182


Segunda-feira, 14 de setembro de 2015

22:45

Estava caminhando pelo corredor enquanto Sarah dava uma de suas aulas e a porta estava aberta. Pode ter sido coincidência, mas como sempre acho que esses psicanalistas não dão ponto sem nó, na exata hora em que eu passava pela frente de sua sala ela falou de novo no trauma. E disse que o trauma pode ser apenas sugerido.

E então como se eu fosse possuída por um demônio, algo me soprou a ideia para você, que me lê quando durmo ou apenas me distraio, você, que certamente tem teorias sobre quem sou eu e qual a relação minha com a história que conto, com Maria, a mãe, com a pequena Clara, com Dr. Claudius, Lara, a vadia, etc, etc, etc.

E se nada daquilo aconteceu?

E se tudo for um incrível pesadelo?

De onde tirei essa merda de história, Sarah?

Mas algo aconteceu, disso tenho certeza. Ainda vejo queimaduras em meus braços. Algo me fez esquecer. Eu não sei se aconteceu mesmo, ou como, ou quanto aconteceu. Mas, meu deus, como dói. Às vezes dói menos, às vezes até me esqueço da dor. Mas ela está lá, me esperando. Para que eu, segundo li por aí, gaste a energia do trauma. Vá escrevendo e falando, mesmo que ninguém leia ou escute.

Além de você.

O caso é que fui até o chafariz em que Cheshire costumava passear e lá estava ela, como uma aparição. Ela perguntou se eu estava escrevendo, porque andou chovendo, e o friozinho voltou, então já está na hora de alguma coisa acontecer. Alguma coisa o quê, perguntei. E ela riu e me entregou um pedaço de papel. Comecei a ler. Era uma carta de Dafne. Ela dizia que estava com saudades, Saudades, Querida, Maria, e tinha novidades. Não ia falar ainda, na hora certa eu saberia, mas o que importa é que ela voltou a pintar e pintando podia quase sentir a minha presença, e como se suas tintas tivessem algo de espiritual, ela pôde meio que me ver: falando de esperança, falando de amor.

Tive certeza que a pequena Daf era louca naquele instante.

Mas sorri.

Loucas, lindas, meninas com fendas.

Lindamente tristes e dentro da dor encontrar novas cores. Tipo um arco-íris vindo das profundezas. Pensei em no que Dafne estava desenhando. Perguntei para Cheshire de onde ela tinha tirado aquela carta, mas ela já havia ido embora.

E se nada daquilo aconteceu, como talvez você suponha?

O que está por trás do mistério da pequena Clara?

Não ouço o piano. Nem fora, nem dentro de mim. Lá fora, faz frio. Não chove hoje. O riacho está distante. Ninguém passeia pelo campo escuro. Clara não está brincando na pracinha, nem Jonas ou Marcos descendo pelo escorregador, nem voando pelos balanços, em queda livre como se fossem pequenos super-homens.

Amanhã tem outra aula com Sarah, para quem quiser. Tenho certeza que ela e minhas colegas-zumbis, minhas queridas irmãs deste asilo, estão plantando sementes, charadas para eu decifrar. Uma vez mais penso que todas sabem como vim parar aqui – mas ninguém vai me dizer.

Cris já foi dormir. Silêncio neste lugar que às vezes é tão enlouquecedoramente barulhento. Mas agora há silêncio. Não ouço o piano, não vejo Clara. Não vejo Daf, nem Cheshire. Não vejo nem o abismo se aproximando.

E talvez isso seja o maior sinal de que estamos para colidir.

23:07

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