quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 188


Quinta-feira, 12 de novembro de 2015

21:47

Sarah permitiu que Cris fosse visitada. Por uma única pessoa: eu. O tempo está para chover de novo, não sei se foi porque eu já tinha me programado para escrever, mas o dia em que vi Cris, um desses últimos dias, foi um dia de sol. Nunca tinha reparado como este lugar onde estamos é grande.

São prédios de seis andares pintados de azul, com janelas gradeadas. Corredores cheios de quadradinhos coloridos, algumas pinturas nas paredes, acho que de santos. São prédios que se grudam nos outros, circundados pelo verde, pelos campos, pelas estradinhas de concreto, os arbustos, o chafariz que Cheshire gosta que fica lá longe, do outro lado, e o riacho lá nos fundos, escondido em algum lugar desta floresta, que não é simbólica, mas uma floresta de verdade. Sem animais selvagens (que eu saiba), mas me impressionei como devemos ser muitas nesses prédios. Como devemos ser muitos também, porque sei que existe uma ala só para homens, e ouvi eles brigando e mesas caindo, assim como ouvi mulheres brigando, lutando boxe ou algo parecido ou qualquer um desses esportes de menino.

Às vezes me pergunto se um dia vamos sair.

Não lembrava como esse lugar é grande.

O caso é que Cris foi liberada para uma visita e fui até lá, no outro prédio, o das Meninas Que Querem Voar Pelos Muros. Voar sem saber voar, até que descubram tarde demais que o pulo não tem volta.

Cada uma tem um jeito de querer voar pelos muros.

Algumas querem voar com remédios, outras com cordas.

De qualquer forma, fico feliz que Cris não quis mais voar. Pelo menos no dia em que fui ver ela e conversamos, ela disse que não estava pensando em voar.

A pequena Clara, meu deus, também quis morrer.

Será que foi assim que acabou tudo?

Será que esse é o incêndio do qual fujo?

O fim desta história sem fim?

Talvez o abismo me chame uma vez mais. O incêndio, o corte no pulso, a asfixia, a luz. Não, apenas a luz.

Não voaremos pelos muros hoje, querida Cris.

Suspiro. Acho que algumas das Garotas Com Fendas são também Garotas Que Voam Pelos Muros.

Mas que de alguma forma, lutam para não voar. Elas também têm seu abismo, que chama. Mas dizemos não. Por hoje.

De qualquer forma, Cris está melhor. Sentamos em um dos bancos de madeira e acho que era dia de visitas porque vi pessoas estranhas aqui ou, digamos, com cara de gente normal. Pobres normais. Não importa. No dia de hoje, acho que somos normais, talvez as únicas normais, já que além dos muros é uma loucura que não consigo entender.

A nossa pelo menos parece familiar.

Clara tentou se matar?

Sim.

Meu deus, quero parar de escrever, mas o trem está de novo descarrilhando e vou escrevendo e pensando em voz alta, a voz sem voz do meu cérebro, Garotas Lindas Que Querem Ser Salvas No Último Minuto.

Blossom estava quietinha com seu caderno. Lady Ballet anda sumida (será que é por causa do namoro com aquele maluco?), Lady Brownie disse que fez mais doces, ela e seu andar em slow motion. Não sei mais o que escrever. Talvez tudo isso seja para dizer que fiquei feliz de ver Cris, que não voou mais pelos muros. Será que as outras também querem voar?

Certamente tem mais gente aqui que quer, ou quer de tempos em tempos, senão não haveria a ala das Garotas Que Voam Pelos Muros.

A história podia terminar hoje. Cris não voa pelos muros. E ficamos nós duas aqui, a salvo neste fim de mundo.

Cris não morre. Nem Clara. A pequena Clara decide, ó meu deus, não ligar o fogão.

Meu deus.

Quero parar o tempo. Quero reescrever esta merda toda, jogar no lixo, apagar, queimar... queimar, não. Não quero queimar.

De onde vêm as queimaduras em meus braços?

Meu deus. Esta história não pode terminar assim.

Não vamos morrer. Eu sou a dona da história, a rainha deste castelo e ordeno: não vamos morrer. Nem eu, nem Cris. Nem a pequena Clara. Nem Maria, a mãe. Claudius, maldito, pode morrer. Queimado, seria um fim justo para o papai que transformou a filhinha em mulherzinha. Lara, tanto faz, titia putinha. Marcos e Jonas? Não, eles também não podem morrer. Jonas Michel, acho que era seu nome. Ambos irmãos da pequena Clara.

Ainda existe esperança. Estamos vivas.

Sim, meninas lindas. Estamos vivas.

E hoje ninguém vai morrer.

22:14

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