domingo, 22 de novembro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 189


22 de novembro de 2015

00:50

Uma nova madrugada está começando.

Silêncio no asilo.

Silêncio fora, barulho no de dentro de mim.

Visitei Cris hoje. Fui até a ala das Meninas Que Voam Pelos Muros. Apesar do dia quente, ela estava com um moletom negro invertido e de chinelos. Perguntei como ela estava. Ela ficou feliz de me ver. Doce Cris. Ela me contou que as garotas de lá esticam as mãos para andarem de mãos dadas com ela, e nesse momento nós duas saímos caminhando. De mãos dadas, como ela gosta. Cris disse que algumas das Meninas Que Voam Pelos Muros gostam de olhar para ela e para elas entre si enquanto tomam banho, algumas das mesmas que gostam de andar de mãos dadas.

− Isso aqui é uma coisa muito lésbica, disse ela.

Caímos na risada.

Doce Cris. Perguntei se ela ainda pensava em voar pelos muros.

Ela disse que hoje não.

Quis levar ela de volta, mas sei que não posso. Não posso resgatar ela do de dentro de si, e talvez Cris tenha o mesmo problema que eu: ambas queremos encontrar nossa pequena Clara.

Minha filhinha linda, garotinha especial. Não mais linda como um corte no pulso, mas apenas: linda.

Em minha mente de pretensa escritora, imaginei Clara tocando o piano de Maria, a mãe. Clara tocando seu próprio piano, ou o piano que um dia seria seu. Maria ensinando ela a tocar, talvez começasse com parabéns a você, depois fosse para o Beethoven, não sei.

Cris disse que tem uma das Meninas Que Voam Pelos Muros, que havia ido para lá porque tentara se matar na prisão, que sempre chama ela de Monique. Meu nome não é Monique, ela disse várias vezes, mas acaba sempre sendo chamada de Monique. Lembrei na hora de quando Sarah, falando daquele Winnicott, disse que a gente tem que conversar com o falso self para saber como ele pensa. Quer dizer, a gente não, só os perturbados dos psicanalistas. Conversar com o falso self é conversar com a loucura, entrar na paranoia alheia. Disse isso para Cris e sugeri, para não puxar briga com a Menina Da Prisão, que se ela quisesse chamar ela de Monique, que deixasse.

− Que diferença faz? Aqui eu posso ser quem eu quiser. Estou num hospício.

Rimos de novo.

Se todo mundo soubesse como faz bem para a sanidade vir para um lugar como esse, pensei, acho que este lugar deveria ser maior. Aliás, enquanto passeávamos, vi uma vez mais como este lugar é imenso. Paramos ao lado de um barranco de concreto, passando por um estacionamento (acho que eles colocam ambulâncias lá), caminhando pelos verdes, as pedras, longes do chafariz que Cheshire adora. Como nunca reparei em nada disto? Apenas tinha uma vaga memória de um riacho lá embaixo, em algum lugar disso que parece uma floresta, mas que na verdade é cheio de jardins e bancos, onde também sentamos para conversar.

Fiquei com medo de Cris querer voar pelos muros de novo. Hoje ela não vai, disse. Ainda há esperança. Podemos encontrar nossa pequena Clara. Aquela criança linda que era a mais linda do mundo antes que a vida fizesse esse monte de merda que fez. Sim, a pequena Clara está nos esperando, esperando a todas nós, Garotas Com Fendas, Meninas Que Voam Pelos Muros, Meninas Da Prisão, Meninas Que Sonham. Todas sonhamos, então ninguém vai pular pelos muros. Estamos vivas.

Sonhamos.

Podemos voar.

Não pelos muros, mas pela estratosfera. Sobre as nuvens, rumo ao céu. Onde encontraremos nossa paz, mas antes dele encontraremos aqui: nesta terra, neste solo. Neste lado dos muros enquanto não chegamos do outro lado. Então não haverá mais muros. E seremos todas rainhas dos castelos de nossos reinos encantados. Rainhas eternas.

Soberanas.

Com sentido.

Rainhas felizes.

Rainha deste lado do paraíso, querida Cris.

01:15

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