30 de julho de 2014
01:35
Ia começar dizendo que não tenho nada a dizer. Escrever para
dizer que não sei o que escrever. Grande novidade. Nunca tenho e algo acontece.
É madrugada. Podia estar dormindo, mas de alguma maneira a madrugada me pede
para fazer algo.
Para sentir.
Para procurar.
Escrevo. Busco palavras.
A música toca lá fora. Dentro de mim. Do fundo de mim. E só
eu ouço, mas sei que o mundo inteiro está ouvindo essa melodia. Meu mundo. Não
preciso de nenhum outro. Sou a rainha, a princesa, a senhora disto tudo aqui.
Quando escrevo “princesa”, me arrepio inteira. A música que
só eu ouço continua triste, linda, cicatrizando.
Princesa como a pequena Clara.
Sweet Lady Clara.
Talvez eu contasse o que conto sempre sobre esta história,
quando penso nela e apresento para meu interlocutor imaginário, para você: sobre
o que se trata? Quem conta esta história é alguém cujo primeiro nome é Maria.
Isso é tudo o que se sabe dela. Isso é tudo o que sei de mim. Sarah, a
psicóloga do lugar onde ela, digo, eu estou, disse: conte uma história. Do
nada, surgiu, porque precisei: um personagem. Logo, um homem. E logo após, uma
mulher. Um homem, uma mulher, uma criança. E um irmão. Claudius, o médico que
voltou a beber depois de dez anos sóbrio; Maria, a mãe que vivia internada no
hospital e que tocava piano. Clara, o centro de tudo. Que era abusada pelo pai.
Maria, a mãe, que era espancada pelo pai. Havia o irmãozinho Jonas.
E Lara.
Irmã de Maria. Tia de Clara. Mãe de Marcos. Gostosinha.
Vadia.
Talvez essa história não se resuma a isso. Ou talvez porque
se resuma sim a isso, não consigo avançar.
Ou me dói demais avançar, então não quero e não consigo se
tornam verbos iguais.
Por que não lembro de nada?
E por que não consigo parar esta história maldita, esta
história de merda que nem tenho coragem de abandonar, de jogar tudo pro alto?
Será que Sarah, essa outra vaca psicóloga, tem ideia do quanto me dói escrever
neste quarto escuro?
Por um instante, penso que sim.
Talvez ela acredite que a madrugada eterna um dia vai ter
fim.
Acho que ela sabe como termina a história de Clara. E não
vai me dizer. Esses malditos psicanalistas. Eu tenho que chegar lá. Talvez já
pudesse ter chegado, mas cada palavra mais perto do abismo me assusta, dói: mas
é como um vento sobre a ferida. Que doeu, mas passou. Tenho que entender o que
passou.
E aceitar que passou.
Como é? Viver o luto. Veja que paradoxo: viver o luto.
Poderia eu mesma me matar e acabar com toda essa farsa. Mas –
e de alguma forma acho que Sarah previu isso –, cada vez que escrevo abana uma
esperança. Do outro lado desta madrugada. Meus escritos não têm sentido, não encontram
um Norte. Mas mesmo sem ter a menor ideia de para onde estou indo, a carruagem
segue. Viajando madrugada adentro.
Levando aquela princesa que não vou descansar enquanto não
encontrar de novo.
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