28 de outubro de 2014
22:43
Querida Sabatha,
Estou com fome e cansada, mas preciso te escrever agora –
antes que desista, mais uma vez. Até ia pensar sobre o que te escrever, mas se
desse tempo de eu fazer isso, também daria tempo de desistir. Escrevo porque
sangra. Você diz que sou corajosa. Diz até que me admira, eu, a Louca Que
Escreve Trancada No Quarto. Não sei, talvez você veja algo em mim que deixei se
perder por aí, como tudo mais antes de eu vir parar neste lugar. Escrevo para
lembrar, mas de alguma forma: também escrevo para esquecer.
Pensei na história de Clara hoje, essa coisa tão horrível de
se escrever. Me veio à mente o peito da pequena Clara. Peito de criança, não de
mulher. Um peito que tanto fazia ser de guri ou de guria. Peito de criança
magrinha. E Claudius deve ter olhado para ele e talvez tenha imaginado que ali
haveria, um dia, um peito de mulher. Seios fartos, Deus me livre. Imaginar um
corpo de mulher no corpo de criança, o corpo que viria ser. E talvez ele tenha
fugido desse impulso, talvez ele tenha lutado contra.
Isso até ele voltar a beber, depois de dez anos.
Isso depois dele mamar champanhe nos peitos de Lara, ela sim
já mulher, putinha maldita.
Se foi isso o que aconteceu, cunhadinha dos infernos, ela
teve culpa no que se transformou a vida da pequena Clara.
A sobrinha que ela deveria cuidar, enquanto Maria, a mãe,
estava internada no hospital.
Titia Gostosinha Vagabunda Do Inferno.
Maria vivia sendo internada em hospitais. Talvez devessem
ter cuidado dela também. Aliás, com toda certeza: deveriam ter cuidado dela
também.
Suspiro.
Não quero falar de sexo. Por favor. Não sei do que quero
falar, mas sei que não quero falar disso. Porque dói. Dói a dor de não saber
como minhas cicatrizes e queimaduras vieram parar em meus braços.
Acho que dói em você também, Sabby. Depressões de fim de
noite ou de dia inteiro, diz você. Acho que ambas temos a mesma doença. É por
isso que nos escrevemos. É por isso que estamos vivas mais um dia, mesmo
desconexas. Estamos vivas enquanto escrevemos.
Como Clara.
Como Maria, a mãe.
Marcos defendeu Clara de Claudius quando ele quis obrigar
ela a beber. Ele bebeu no lugar dela. Talvez, se é que chegou a crescer, tenha
se tornado alcoólatra. Como o pai. O pai Claudius, que ninguém sabia que era
seu pai, exceto Lara porque o Dr. Respeitável & Admirado Pela Sociedade não
poderia assumir um filho fora do casamento. Não que se importasse. Ou talvez
sim, porque de alguma forma, quando Marcos visitava os primos Jonas e Clara,
ele – mesmo que não soubesse, embora talvez desconfiasse – estava mais perto do
pai. E se pai é quem cria, bem, não sei se ele realmente pode dizer que teve um
pai. Eu não sei, tem muitas coisas dessa história que ainda não entendo. Ou não
quero entender.
Porque lembrar dói. Então esqueço. Mas às vezes esqueço de
esquecer, e algumas coisas voltam. Acho que Sarah falou em ab-reação ou algo
assim.
Você deve imaginar que existe uma relação mais próxima do
que quero supor com a história que estou inventando e eu, não é? São símbolos?
São pessoas de carne e osso que digo para mim mesma que são apenas fruto da
minha mente febril?
Lá fora faz calor. Hoje não está chovendo. Talvez não chova
tão cedo. Se esta história termina em um dia de chuva, então ainda temos um
longo caminho pela frente, Sabby.
Fico feliz que você esteja por aí.
De alguma forma que ainda não entendo, talvez você também
faça parte da história de Clara.
Love,
Mary
23:08