2 de setembro de 2014
00:20
Outra madrugada começa. O piano que me rasga e me faz sentir
viva – feito um corte no pulso. Um sonho que não foi, que jamais será. Que me
dá vontade de chorar cada vez que penso nele, e nem sei do que estou falando.
Não consigo tocar, não consigo cheirar. Feito criança abandonada.
Dafne me disse que às vezes a tempestade pode ter momentos
de garoa. Uma chuva fina que talvez até faça a gente esquecer que está
chovendo.
Acho que noite após noite é esse sonho que persigo. Escrevo
para encontrar o sonho. Esse que guarda tudo o que aconteceu, disfarçado pelas
roupas que o inconsciente montou para me proteger. Ó, Sarah, por que faz isso
comigo?
Sigo perseguindo ainda não sei o quê. Talvez seja o fim
disto tudo: o abismo que me aguarda e mantém o segredo da pequena Clara. E de
Maria, a mãe. Que vivia sendo internada em hospitais. Maria que tinha
depressão, suponho. Talvez tivesse um monte de coisa. Como não ter? Espancada
pelo marido alcoólatra, que comia a cunhadinha e, meu deus, a filha debaixo de
seu nariz. Não sei se ela sabia, não sei. Neste momento, não julgo Maria.
Talvez ela não soubesse. Talvez soubesse e isso a estava matando por dentro.
Sarah começou a me ensinar como fazer genogramas. Ela montou
um quadradinho meio riscado de preto para um homem alcoólatra, uma bolinha pela
metade riscada para uma mãe depressiva. Flechinhas em direção à bolinha
debaixo, filha do casal, querendo dizer que o pai abusava da filha. Risco torto
para relação conflituosa: risco torto para a bolinha (Maria) e para o
quadradinho e a bolinha abaixo (Jonas e Clara, que era a caçula). Um risco
pontilhado para relação extraconjugal até a outra bolinha (Lara) e um risquinho
para baixo, para o filho não assumido (Marcos). E fez um triângulo em torno de
quem morava junto.
Fiquei na dúvida: esse triângulo englobaria Lara e Marcos,
além dos oficiais Maria, Jonas e Clara?
Não sei. Talvez tenham morado juntos por um tempo. Talvez,
como já devo ter escrito em algum lugar perdido neste texto, Lara tenha vindo
para cuidar de Clara e Jonas, já que a irmã Maria estava internada no hospital.
Talvez Marcos, cujo pai ninguém sabia quem era, tenha vindo para brincar com a
prima Clara.
Que na verdade, ninguém sabia, era sua irmã.
Talvez ele soubesse ou intuísse, porque ele defendeu ela de
Claudius.
E então que hoje me senti triste, abandonada. Rodeada de
gente e sozinha, que é como me sinto de tempos em tempos quando estou com as
pessoas daqui. A pior solidão é a solidão em grupo. Dói. Dói tanto que me
faltam palavras.
E tudo no que consigo pensar, minha eterna luz de fim de
túnel, para usar uma figurinha meio banal da literatura, e nem sei se é uma luz
de fim de túnel, ou apenas uma estrela no céu: Maria tocando para Clara.
O piano é uma estrela no céu. Me arrepio uma vez mais. E tenho
vontade de chorar. Mas acho que hoje tudo o que vou fazer é, de novo, rezar
para algo que nem sei se existe. E sonhar com esse ponto no céu da madrugada.
Que, de alguma maneira, me cuida lá de cima.
00:41
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