16 de outubro de 2014
21:08
O piano me trouxe de volta a este quarto. A porta se fecha,
devo escrever.
Dafne perguntou se eu tinha escrito algo novo. Me disse que
sua pintura da história de Clara está quase pronta. Fiquei curiosa: de onde ela
está tirando as imagens para compor seu quadro? Confesso que também não sei de
onde tiro as minhas para compor aquilo que escrevo. Que talvez nem sejam imagens,
mas espectros de algo que se perdeu. Talvez Dafne sinta o que sinto, por isso
pode pintar uma história que não mostrei para ninguém. Ainda acho que ela vai
se quebrar. Não por se magrinha, ou não só por isso.
Acho que ela tem seus buracos, e talvez por isso pinte.
Tenho minhas fendas e talvez tente encher elas com as coisas
que escrevo, com esta história sem eira nem beira. Talvez, de alguma forma, a dor
de Dafne seja parecida com a minha. Por isso ela pinta. Por isso eu escrevo. Escrevo
para não morrer. Não morrer de novo, porque talvez tenha quase morrido. Espero
não ter morrido e estar escrevendo isso do além, se ele existir. Algo além, com
certeza. Aquilo que restou. É daqui que escrevo: aquilo que restou.
Dafne me disse de novo que às vezes os pensamentos nos dão
folga. Fantasmas e demônios que dançam feito crianças inquietas e causam sei lá
o que – eu sei, não consigo descrever – em nossos corações, ou aquilo que
sobrou deles. Então ela me disse:
− Às vezes eles nos dão
folga.
− E a gente até pode
acreditar que é feliz, disse eu.
Ela sorriu.
Pessoas onde a dor se mostra um lugar conhecido, talvez um
lar, se entendem. Mas ouvi que talvez eu possa ajudar as outras pessoas. Que se
sentem iguais. Pelo direito de sentirem dor, e não se sentirem menos por causa
disso. Ou talvez até se sentirem menos, mas não se sentirem menos por se
sentirem menos.
Há algo de poesia em um corte no pulso e pensar nisso me faz
quase parar de escrever para olhar minhas cicatrizes.
Há algo de poesia em querer viver, apesar de tudo.
Apesar de tudo, suponho, deve significar: esperança.
Minhas costas doem. Fiquei curiosa para conhecer a pintura
de Dafne. Talvez sua pintura da história de Clara também signifique isto:
esperança. Uma mãe tocando piano para sua filha linda. Talvez Maria, a mãe,
também tocasse para preencher suas fendas. Vazios, cavernas, túneis, infinitos,
preenchidos pelo piano. Esse que me faz escrever, e que me faz voltar a este
quarto. E querer estar viva mais um dia. Talvez seja o piano a me cuidar lá de
cima.
Como um parente que morreu e virou um anjo.
Me arrepio quando escrevo isso. E tenho vontade de chorar. E
ser abraçada, bem apertado, por esse anjo, porque sei que deve haver um para mim.
Um anjo-piano. Talvez a melodia do piano seja o sopro que me trouxe viva até
hoje.
E se estou viva, talvez Clara e Maria, de alguma forma,
também estejam.
21:26
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