Quarta-feira,
10 de dezembro de 2014
22:21
Ouço
trovões. Lá fora chove. Devo escrever. Não tão forte para trazer o frio de
volta, mas suficiente para me trancar aqui. E retomar esta história, cada vez
mais distante – e incrivelmente perto, tanto que mal posso descrever.
Nesses
dias que fiquei sem vir aqui, me perdi caminhando aqui pelo campo, e já me
perdi também pelos corredores deste lugar. Aquela garota que estava de pijama no
outro dia me perguntou para onde eu estava indo. Eu disse que não sabia,
perguntei onde ia dar aquele caminho, eu, Maria Perdida. Ela sorriu e disse que
qualquer lugar servia, já que eu não sabia onde queria chegar.
Fiquei
pensando naquilo.
Ela
tinha um sorriso tão grande, aliás, era só sorriso, que lembrei do gato Cheshire,
da história de Alice. Essa garota era meio índia, eu que nunca consigo
descrever as pessoas. A índia do pijama e do sorriso gigante. A Garota Cheshire.
Ela disse que eu era engraçada. Não entendi. Não vejo graça em mim. Mas talvez
tenha sido um sinal.
Sarah
me disse que quando alguém é abusador é porque já foi abusado, e quando um pai
abusa de sua filha, a criança cinde com a realidade, porque o pai é o que cuida,
o que cuida dela, o que ama ela, e aliás talvez seja o que ela acredite que ele
estivesse fazendo: papai faz coisas com a filhinha no banho porque ele ama ela.
Papai é tudo de bom e tudo de ruim fica com ela.
Está
acompanhando o raciocínio?
Claudius
que amava a pequena Clara no banho e quando ela talvez tenha dito para Maria, a
mãe, que papai estava fazendo coisas com ela, Maria pode não ter levado a
sério. Ou talvez Maria não conseguisse suportar a ideia de seu marido não
deixar sua filha ser criança. Porque Clara não foi criança. Ela não teve
infância. E talvez o sentido de tudo isso, dessa história de merda, seja
reencontrar, ou criar, a infância que Clara não teve.
Sabby
diz que eu tenho que pular no abismo, que tenho que segurar em sua mão, ou na
mão de Sarah, e pular. Dafne acha que vou encontrar um meio de desviar do
abismo. Talvez o pular do abismo seja justamente não pular. Apenas mudar de
caminho.
Dói
escrever, dói lembrar o que não lembro, ou o que acho que não lembro e talvez
Sarah dissesse simplesmente: está tudo recalcado. A história da pequena Clara é um
recalque.
Talvez
a de Maria, a mãe, também.
Mas
se estão recalcadas, em algum lugar desta caverna sem fim, deste asilo, deste
hospital, deste fim de mundo, deste lugar do além, a verdade se esconde.
E
vou escrevendo, assim sem pensar, jamais pensando ou me programando porque foi
isso o que Sarah disse que era para fazer, malditos psicanalistas: apenas
escreva. E confie.
A
chuva talvez aumente. Sinto um vento frio que para mim é sempre esperança. E enquanto
eu puder escrever essa palavrinha, tão pequena e tão imensa, linda em sua
loucura, naquilo que ela promete e esperamos que se cumpra, algum dia, sei que chegarei
ao fim desta história.
E
Clara, enfim, terá sua infância perdida de volta.
22:39
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