Quinta-feira,
30 de abril de 2015
21:55
Hoje
é aniversário de Lady Brownie. Ela disse que ia fazer uma festinha, disse que
queria que eu fosse, e se eu não fosse, que mandasse um presente para ela,
talvez um presente literário, quem sabe uma carta deixada embaixo da porta de
seu quarto, enquanto ela está lá com minhas companheiras deste lugar sem nome
nem tempo. Brownie estava conversando no corredor hoje com uma garota morena,
magrinha e pequena – não tão pequena quanto Acácia, mas pequena –, uma que está
sempre lendo. Ela é a Garota Que Sabe Das Coisas. Então lembrei de Jimmy
Neutron, e portanto vou chamar ela de a Garota Neutron. Pois que ouvi ela dizer
para Brownie, que disse que eu tinha ficado marcada por seus brownies, e ela
disse que não tinha sido só eu. Que os brownies de Brownie chaparam ela, e as
duas caíram na risada no corredor. A Garota Neutron e a Garota Que Anda Em Slow
Motion.
Quase
posso sentir o cheiro de infância daqui, Brownie. A infância que se perdeu e
talvez – Sarah vai adorar isso – seja por isso que eu sempre batize os nomes de
minhas colegas com nomes de infância. Na verdade, não tinha pensado nisso até
batizar a Garota Neutron, mas acabo de me lembrar que também batizei a Garota
Cheshire, a Garota Que É Mais Sorriso Do Que Garota.
De
onde vem tudo isso?
Assisti
uma dessas aulas que Sarah dá sobre aquele velho tarado e disse que a gente não
lembra dessa história que querer transar com o pai, e que quando ele saiu da
Europa, disse “vamos espalhar a peste na América”.
Transar
com o papai.
Que
nojento.
Ela
que se foda.
E
ele também.
O
que será que a pequena Clara pensaria dessa teoria idiota?
Ela
não pensaria. Se ela chegou a crescer, se ela tivesse crescido, se Maria, a
mãe, estiver ou estivesse viva, espero que elas mandassem para a fogueira todo
esse pessoal doente que pensa isso.
Mas
talvez a Garota Neutron saiba mais sobre isso, e me diga que não é bem assim.
Talvez Brownie me dissesse que não é bem assim também. Que um cheiro de
infância é tudo que a gente precisa. Uma memória boa, um dia bom, uma vida boa.
Li
por aí sobre ideal de ego, mas acho que isso é para o futuro, não para o
passado.
Meu
deus, Sarah vai acabar me enlouquecendo. Mas dói, de alguma forma, pensar que
tudo isso faz parte de um processo maior. Quer dizer, de repente tem alguém
jogando com tudo isso, tipo, Maria Marionete.
Então
ouço o piano que, pensei agora, também tem cheiro de infância. Nunca tinha
pensado nisso. Pelo menos que eu lembre, porque não lembro de muita coisa, não.
O cheiro de Maria, mamãe querida, tocando para sua princesa, a pequena Lady
Clara. Talvez houvesse dor em suas melodias. Mas talvez também houvesse
esperança. Encontrar um sentido na dor que houve, na dor que deve partir, feito
trem com hora marcada.
Esse
negócio de livre associação funciona, tenho que admitir. Nunca, jamais, penso
em uma única palavra do que vou escrever aqui. E então, algo que não sei
explicar acontece. Acontece, e sem saber para onde estou indo, nem de onde
estou vindo, vou escrevendo.
Talvez
escreva tudo isso para conseguir dizer o que não consegui, desde a primeira
frase.
O
abismo se aproxima de novo.
Não
posso fugir dele. Tento, tento a cada noite, mas ele me chama. Talvez como a
voz dentro da cabeça de um esquizofrênico, ou pode ser a minha mesma, eu que
ainda não sei o que tenho, Maria Sem Diagnóstico, que pode dizer “se mate, pule
do penhasco, acenda o fogão” – de novo o fogão – pode me dizer também “viva,
escreva para viver, escreva para lembrar”. Confie no piano.
Confie
que vamos sair do outro lado deste túnel.
Na
hora certa.
Penso
neste momento em como está sendo a festa de Brownie, elas todas perdidas em
alguma sala, ou salão, penso eu, deste lugar. Brownie deve estar rindo. Não sei
quem mais foi. Saberei na próxima sessão de corredor. Talvez Neutron me conte.
Talvez,
porque sonhei isso, eu desista de jogar fogo e acabar com esta história de
merda, ou desista de apagar tudo o que escrevi aqui, se eu tiver certeza – mas certeza
mesmo – que ninguém vai saber que fui eu que escrevi, e então quem sabe este
texto também espalhe sua peste na América.
Seria
lindo, não?
É
claro que isso não vai acontecer, a menos que tudo fuja do meu controle. Maria
Que Não Pode Perder O Controle.
Mas
encontrar um sentido na dor que deve partir parece um bom motivo para eu
continuar escrevendo, esta historiazinha que ninguém vai ler, essas palavras
horríveis que só alguém interna daqui escreveria. Eu disse interna? Não sei.
Sairei um dia? Não sei. Sobrou algum lugar para ir? Acho que não, mas ainda não
tenho certeza.
Mas
sei que o piano, de alguma forma, em minha mente enferma, ordena: continue
escrevendo. Encontre a pequena Clara.
Me
arrepio inteira quando escrevo isso.
Acho
que estou mais perto da verdade do que consigo suportar.
Quero
parar de escrever, mas não consigo. Quero que a locomotiva pare, mas ela não
tem como parar, rio que é.
Um
cheiro de infância, se foi tudo o que restou, tudo o que deve ficar, por mim,
tudo bem. Basta.
E
então o trem diminui e talvez eu possa dormir. Quem sabe até em paz.
Feliz
aniversário, Lady Brownie.
22:38
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