segunda-feira, 11 de maio de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 170




Segunda-feira, 11 de maio de 2015

20:39

Tive um sonho hoje.

Eu estava em um palco fazendo o que disse que nunca farei: falando sobre a história da pequena Clara. Era como uma dessas aulas que a Sarah de vez em quando dá, e a Garota Neutron também. Quer dizer, Neutron é como eu (todas podemos ensinar alguma coisa, se quisermos), mas havia uma outra, que já vi dando explanações por aqui. Ela também é uma Garota Que Sabe Das Coisas, mas não é baixa como a Garota Neutron. Na verdade, ela é alta, de sorriso grande – não tão grande como o de Cheshire, mas grande também – e loira, como se houvessem derretido ouro e colocado sobre sua cabeça. Ouvi ela falando sobre um russo, acho que era Vygostky. Como não sei seu nome, e isso tampouco importa, ela será a Srta. Vygotsky. Mas acho que ela também gosta daquele velho tarado que Sarah gosta, porque ouvi ela falando sobre o trauma ser uma inundação de dor e por isso a gente esquece – que é mais ou menos o que Sarah me sugere que aconteceu comigo.

Mas não era isso o que eu queria contar.

No sonho, a Srta. Vygotsky me convidava ao palco para eu falar sobre a história que escrevo aqui neste quarto-cela. Eu montei aquele genograma que me ensinaram – na verdade, nunca soube fazer aquilo, mas no sonho eu sabia – e que conta a história da família de Clara por desenhozinhos, quadradinhos e bolinhas. É claro que foi um sonho, porque jamais faria isso. Mas comecei e falar, e minhas colegas deste lugar de muros e corredores faziam suas apostas.

Quem é a Maria Que Conta?

Havia uma garota de pele morena, meio índia, com sotaque diferente da maioria das minhas colegas-irmãs deste asilo. Ela disse que veio de Buenos Aires, então será a Chica Tortoni. Ela pareceu interessada. Havia um jovem gordinho e alegre como só os gordinhos conseguem ser: alegres e cheios de ideias. Ele falava que tudo é comportamento e me explicou a história dos ratinhos. Este é o Garoto Skinner. No fundo, acho que ele pensa parecido com a Sarah e suas loucuras. Talvez sejam níveis diferentes de loucuras, essa dos ratinhos e dos comportamentos das pessoas – sendo, sem dúvida, a loucura de Sarah – e a da Srta. Vygotsky, descobri então – a loucura suprema. Pensei que deve haver uma conspiração psicanalítica que ronda este lugar.

Então acordei.

Passei pelos corredores hoje, enquanto chovia lá fora, e vi Brownie conversando com a Srta. Vygotsky. Ela disse que ainda não tinha provado dos brownies de Brownie. Quando cheguei perto, Brownie, a Garota Que Anda Em Slow Motion, me perguntou se eu ia escrever hoje.

Olhei pela janela.

Maria Que Escreve Quando Chove.

Maria Que Nunca Sabe O Que Vai Escrever.

Mas Que Ainda Assim Escreve.

Deve ter ficado em algum lugar perdido dentro de mim. O Garoto Skinner foi quem me emprestou aquele livro do tal Bandura. Devo ter ouvido a Srta. Vygotsky falando em algumas dessas salas. Devo ter reparado no sotaque de Chica Tortoni. Tanta coisa que deve ter acontecido.

Tanta coisa que aconteceu.

Por que ainda não consigo falar sobre isso?

Por que não lembro?

Porque não posso ou porque também fui inundada?

Meu deus, inundada de quê?

Suspiro.

O penhasco. Sempre fujo dele. Sempre tento fugir. E vou esticando o texto, sem jamais saber que palavra virá a seguir, mas sem conseguir parar, como se meus dedos tivessem vida, ou pode ser simplesmente aquela inundação que a Srta. Vygotsky falou. Tenho certeza de que ela é do time de Sarah. Psicanalistas Do Inferno Que Tiram Minhas Noites De Sono.

Não sei por que, mas pensei agora em Claudius.

Maldito.

O homem dos pesadelos de Maria, a mãe.

E da pequena Clara.

Às vezes me volta à mente a ideia de que esta história termina em um dia de chuva. O frio voltou e esses dias cinzas lindos também. Então vou escrevendo, trancafiada aqui. Pensando na Srta. Vygotsky, na Chica Tortoni, no Garoto Skinner. Em Brownie.

Em Maria, a mãe.

No tempo que se passou.

Na pequena Clara.

Sweet Lady Clara.

E se Clara não for uma pessoa, mas um objeto, como ouvi o Garoto Skinner sugerir em meu sonho?

Chica Tortoni também tem suas teorias.

E se eu descobrir que tudo isso é um grande delírio?

E se eu já tiver morrido, como supus? De alguma forma, sei que morri.

Só quero descobrir o que fui antes.

E penso em Brownie e seus brownies com cheiro de infância.

Quase posso sentir seu cheiro.

A infância que se perdeu. Mas que ainda está lá. Perdida dentro de mim.

Como essa história horrível que odeio escrever.

O que fui antes de morrer?

Que vida foi essa que se perdeu?

Sarah e suas loucuras que contaminam. Neutron, Vygotsky, talvez elas sejam que nem eu, e somos todas desgarradas neste lugar que às vezes me parece um cemitério. Ou uma casa abandonada.

Uma casa abandonada.

Um lar que se quebrou no meio.

Sim, ainda existe esperança.

Reconstruir a vida que se perdeu, o lar que se foi. Sobrou algo depois do incêndio que consumiu a todas nós?

Então olho para as marcas em meus braços. Não programei escrever “incêndio”, mas de alguma forma meu cérebro cuspiu essa palavra. Um incêndio que consumiu a todas nós.

Nem todas.

Estou viva.

Estamos vivas, pequena Clara.

Estou viva dentro de você e você dentro de mim.

Assim como Maria, a mãe.

A vida ainda não se perdeu.

Ainda não.

21:19

Nenhum comentário:

Postar um comentário