19
de maio de 2015
23:11
Desde
que encontrei no corredor Sarah e a Srta. Vygotsky conversando – eu sabia que
elas compartilhavam em segredo as teorias daquele velho tarado –, e Sarah me
perguntou à queima-roupa se eu estava escrevendo, na frente da Srta. Vygotsky,
que a essa altura já sabe que escrevo, e não tenho mais como fingir que não
escrevo sozinha no quarto, estava para vir aqui escrever. Qualquer coisa que me
livrasse da dor. Escrevo por isso. Lembrar, se lembrar algum dia, é lucro.
Gostei de ver Sarah, a psicanalista que me enlouquece por quem nutro amor e
ódio.
Eu
disse amor?
Talvez.
Talvez nem tudo tenha se perdido. E conforme vou escrevendo, na certeza de que
ninguém vai ler esta merda, os pontinhos vão se juntando, como Sarah disse que
aconteceria, se eu escrevesse. Tenho que escrever para ela para completarmos o
plano – descobrir o mistério da pequena Clara. A garotinha que ficava ouvindo
sua mãe tocar piano, enquanto chorava – mãe e filha, talvez escondidas uma da
outra. O piano que volto a ouvir.
Sarah
e a Srta. Vygotsky conversavam em um destes corredores que às vezes me parecem
incrivelmente longos, e acho que vi elas conversando lá embaixo, em volta do
chafariz que Cheshire adora. Então, a Srta. Vygotsky, que está de aniversário
daqui a alguns dias, retirou-se para uma de suas explanações e a Garota Que
Caminha Em Câmera Lenta me convidou para assistir. Fui. Caminhamos até lá, e
fui conduzindo Miss Daisy, como gosto de me referir a Lady Brownie cada vez que
a ajudo pelos corredores. A Srta. Vygotsky falou sobre um documentário em que
havia uma aluna jovem, nordestina e pobre, poetisa genial, cujos professores
duvidavam de sua capacidade...
Pausa.
Cris bate na porta. Está escrevendo, pergunta ela.
Suspiro.
Ela
quer conversar.
Quero
fugir.
Preciso
continuar escrevendo. Quero pular os muros. A dor não passa.
Ela
disse que estava com saudades.
Cris
que de alguma forma gosta de mim.
Que
já pensei até que poderia ser minha irmã.
Volte
a escrever, disse ela.
Então
pensei na garota que a Srta Vygotsky havia falado e que os outros professores
achavam que ela não teria capacidade para escrever aqueles belos poemas.
Brownie disse que isso estava sob medida para eu escrever. Tipo assim, quem sou
que ninguém acredita? Se alguém lesse, pensaria que é a louca que escreve
trancada no quarto? Alguém acreditaria em mim?
Alguém
acreditou em Clara quando ela disse que não gostava do que Claudius fazia com
ela?
Maria,
a mãe, acreditou?
Suspiro
de novo.
Papai
que brincou com a filhinha feito papai que brinca com a mamãe.
Filho
da puta, maldito.
Então,
me pergunto: quem sou eu dentro da história que conto?
Já
me ocorreu que Maria, a mãe, pode ter sido abusada por seu pai, e como não
contou, ou contou e não acreditaram, ela passou a desgraça para a pequena
Clara. Que não contou ou contou e não acreditaram. O Dr. Claudius? Jamais.
Mas
também me ocorreu que Clara é parecido com Lara, a titia putinha que deu para o
papai na noite de réveillon e fez ele tomar um champanhe depois de dez anos sem
beber uma gota. Clara é parecido com Lara.
Mas
também é parecido com Claudius.
E
se Claudius e Lara geraram Clara?
Será
esse um dos mistérios desta história horrível?
Sarah
diria que, de alguma forma, escrevo para encontrar minha mãe.
Minha.
A
família que se perdeu no incêndio, esse que especulo que deve ter acontecido,
talvez o mesmo que seja o destino desta história. Não sei o que é verdade ou
ficção, apenas vou escrevendo.
Meu
deus, como odeio esta história.
A
Srta. Vygotsky, Sarah, Brownie, Cheshire, Cris, Acacia, Blossom e tantas outras
que aparecem nesta história e somem rápidas feito meus suspiros, todas elas:
escondem de mim o que procuro. Talvez se juntar elas todas monte este
quebra-cabeça. Como uma dessas brincadeiras que os psicólogos dizem para as
crianças fazerem, tipo, desenhe uma casa, um homem, uma mulher, uma criança,
monte com bonequinhos, veja o que eles fazem.
Talvez
Clara, se chegou a ir em algum psicólogo, tivesse montado o bonequinho se
esfregando na bonequinha. Meu deus, o bonequinho comendo a bonequinha.
Será
que ninguém naquela merda viu que a garota estava sendo abusada?
Talvez
tenham visto. Mas fingiram que não.
Ou
não quiseram ou não puderam.
Como
eu.
Que
não quero ou não posso continuar escrevendo. Sarah sabe disso. Talvez a Srta. Vygotsky também. Cris deve saber, às vezes parece que ela me entende mais do
que qualquer uma aqui. Suspiro de novo. Não tenho vontade de chorar. Só queria
que a dor passasse. Queria dar uma volta pelo chafariz, mas Cheshire deve estar
dormindo. Ou passeando escondida. E rindo. Lady Ballet talvez dançasse. No
escuro, soberana feito a madrugada.
Maria,
a mãe, talvez tivesse um segundo nome.
Maria
Madalena?
Maria
Catiúcia?
Maria
Francisca?
Maria,
a mãe. A dor não passa. E agora é muito tarde para tentar pular o muro. A
madrugada se inicia, mas agora eu sei: chegamos um pouco mais perto daquele
abismo hoje.
E
vou encontrar minha mãe, Sarah.
23:52
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