19:09
O tempo está começando a mudar. Dizem que falar do tempo é
assunto universal quando a gente não tem assunto.
Ia escrever alguma coisa que, de novo, esqueci. Falei com
Cris antes, ela foi tomar banho. Talvez eu tome mais tarde, sozinha. É claro,
sozinha, com quem ia tomar banho? Mas talvez a gente jante antes. Ouvi uma
discussão por aqui e confesso que fiquei incomodada. Bate-bocas me incomodam.
Agressões me assustam.
Me trazem de volta memórias ruins, embora ainda não consiga
falar sobre isso.
Não consigo falar porque não lembro ou porque não quero?
Não consigo porque não posso. E não interessa, vou mudar de
assunto. Apenas queria registrar que essas agressões me irritam. Duas pessoas
aqui estavam discutindo. Não chegaram a brigar, mas pelo silêncio que se
seguiu, e ouvi que tinha mais gente lá, deve ter ficado um climão. Que bom que
não foi comigo, e quase agradeci por quase ninguém falar comigo aqui.
Pelo menos também não brigam comigo.
O caso é que Sarah me emprestou o diário de uma tal Anne,
que escrevia enquanto estava enclausurada com a família em um esconderijo em
meio à guerra. Não sei por que Sarah quis que eu lesse esse livro, se para ler
a história de uma garota que escreve um diário, ou se para pensar na família
dela. Notei que ela tinha algumas questões edípicas, porque não se dava nem um
pouco com a mãe e adorava o pai.
Meu deus, Sarah está mesmo me contaminando com suas
loucuras.
Sim, eu li um pouco sobre Complexo de Édipo, mas confesso
que me deu nojo. Ou não entendi nada. Quer dizer, filha com pai? É isso mesmo?
Como Clara e Claudius?
Me deu nojo, raiva, medo, tristeza. Talvez não tenha
entendido direito como funciona, ou sequer queira pensar nisso. Você quer dizer
que Clara gostava do que Claudius fazia com ela? Vá para o inferno, nem em mil
anos. Fodam-se, psicólogos. Mas talvez o primeiro homem que ela teve, o
primeiro homem que ela conheceu, o homem que era para ter sido seu herói, seu
modelo de outros homens que viriam no futuro, se viessem, a traiu. Esse homem
abusou dela.
Talvez muitas vezes.
Talvez muitas vezes.
Repeti a frase de propósito. Como algo que ficou trancado em
mim. O primeiro homem da vida de Clara marcou ela, como gado, talvez para o
resto da vida.
Maldito.
Preciso ler mais dessa Anne. Não sei se ela passou pela
mesma coisa que Clara. Mas acredite: mais do que posso entender, e mais do que
posso dizer, sequer dizer a mim mesma, é tudo sobre Clara. Essa história é
sobre aquela garotinha que sumiu no tempo.
E talvez daquela Maria que sumiu também.
19:25
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