23:32
De novo estou com fome, de novo não jantei, e de novo
escrevo. Talvez eu devesse comer em vez de perder tempo escrevendo isso. Já vi
Cris hoje mais cedo, e de novo ela não vai jantar comigo.
Maria Que Janta Sozinha.
O caso é que li um pouco dos livros de Sarah, uns que falam
sobre perda de memória, busca da identidade. Essas coisas que não entendo. Quer
dizer, entendo que não lembro, e não lembro de quase nada, embora acredite que
haja uma luz em algum lugar.
Luz.
Existe uma luz muito forte, a tal clareza de bomba nuclear
que, ainda não sei onde, existe nesta história.
Li que quando a gente sofre um trauma a gente pode esquecer
de algumas coisas.
Trauma forte.
O cérebro apaga.
Ou recalca.
Ai, psicanalistas. Sarah está me contaminando com sua
loucura. Mas não sou louca. Maria Que Não É Louca.
Ouço barulhos parecidos com os de uma máquina de lavar.
Seria possível alguém lavando roupa as 23 e 38? Claro que é possível. Existe
muita coisa aqui que ainda não entendo. Os garotinhos, por exemplo. Jonas e
Marcos.
Jonas, não sei se já comentei, tem o mesmo nome de um irmão
meu. Ou acho que foi meu irmão. Talvez eu tenha inventado isso também. Assim
como Maria, a mãe, tem o mesmo nome que o meu, e só coloquei esses nomes porque
– você sabe – sou uma péssima escritora.
Se você não lembra de nada, como lembra que tem um irmão com
o nome de Jonas?
Talvez em algum canto da floresta do meu cérebro esteja a
resposta que vai me fazer sair do outro lado.
Esqueci de tudo, ou quase. Ou lembro de algumas coisas,
depois esqueço de novo. Acredite, não sei o que andei escrevendo por aqui, e
não pretendo reler.
Esses dias Sarah falou, e espero que ela esteja brincando,
que depois que eu terminar de escrever a história de Clara, ela podia publicar
isso aqui. Nem em mil anos, falei, e mesmo que ela tenha rido, porque ela
sempre larga suas charadinhas psicanalíticas e sorri, na certa já sabendo que
vou querer matar essa mulher, e deixa tudo no ar. Mas vou escrever até o fim,
antes de jogar tudo no lixo.
Ninguém jamais vai ler isso aqui.
Prefiro morrer antes.
Mas talvez nem todos tenham morrido. Eu não morri. A menos
que seja um espírito vagando e acredito estar escrevendo uma historinha muito
da ruim.
Sinto fome. Não consigo ver o homem alto e moreno de cabelos
lisos, nem Lara. Nem Maria, na verdade. Mas estou me perdendo – de novo.
Preciso conhecer melhor meus personagens, dizem os escritores, mas não sei muito
de Jonas e Marcos. Ou melhor, não consegui inventar nada que valesse a narrativa.
Um deles defendeu Clara. Quando Claudius obrigou ela a
beber.
Um deles fugiu de casa.
Vamos lá, Maria, você não pode ser tão ruim assim.
Invente qualquer coisa, pelo amor de Deus. Ninguém vai ler
mesmo.
Um deles era filho de Lara.
Meu deus, que merda de história, e como me odeio por não
conseguir criar uma historinha que qualquer criança conseguiria. Qualquer
criança.
Qualquer criança.
Talvez a criança que fui e não lembro.
O que foi que aconteceu que me trouxe a este lugar?
Sarah, maldita, se você sabe a verdade, e eu tenho certeza
que sabe: por que não me conta e acaba com este pesadelo?
23:51
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