Talvez eu venha, você disse.
Na dúvida, vou escrever.
Ou melhor, escrevo agora.
Você vai me dizer que estou de sacanagem, mas está chovendo
de novo. Não sei se chove tanto, ou é apenas a imagem da chuva que volta em
minha mente, dia após dia, e geralmente isso acontece à noite. Sinal de que
deve ter havido algo na chuva (lembra dos passeios e deslizes nas poças d’água
de Clara?), mas talvez tenha sido de noite também. É que em minha imaginação
não cabe uma garotinha pequena como Clara passeando pela rua à noite, ainda
mais em uma noite chuvosa. Mas talvez aí esteja a chave: ela estava onde não
deveria estar, quando não deveria estar. Com quem não deveria estar? Não sei,
você talvez saiba mais do que eu, e não entendo por quê, embora desconfie, não
vai me contar. Por algum motivo, você não quer que eu sofra.
De vez em quando, algumas coisas me voltam enquanto escrevo
neste quarto. Meu destino é continuar escrevendo. Escrever para lembrar, e cada
palavra aqui nesta tela, ou neste papel, porque não sei onde você me lê, os nós
vão desatando. Ainda não consegui batizar o homem alto e moreno de óculos escuros,
nem a mulher ou a irmã. A mulher, até onde lembre, estava no hospital.
Depressão pós-parto ou tentativa de suicídio? Você que está aí hoje, e sei que
estava aqui nos últimos dias, você que tem lido o que tenho escrito, até porque
é para você que escrevo, ajude-me. Estou pedindo sua ajuda. Ajude a sua irmã.
Irmã?
Sim, sou sua irmã e meu nome, quer dizer, meu primeiro nome,
que odeio, é Maria. Sempre gostei de ser chamada pelo segundo nome, e era, até
vir parar neste quarto, tendo que escrever esta novela sem fim, a pedido de Clara.
Digo, de Sarah. Sarah, que acha que eu escrevendo vou me lembrar daquilo que me
esqueço, aquilo que me fez esquecer, que é o por que de eu estar aqui. Tenho
recortes de invencionices, e não quero pensar que as ideias que estou tendo
para uma simples historinha foram baseadas na realidade. Dizem que tudo que um
autor escreve é autobiográfico em maior ou menor grau (em menor grau, se ele
conseguir disfarçar bem, e em maior grau, se sua ficção for apenas uma
autobiografia frustrada). Mas não sou autor. Nem autora. Esses tempos
perguntei, assim por perguntar, se você adivinharia o sexo de alguém pelo
simples modo como essa pessoa escreve, e você não me respondeu. Escrevo como
homem ou como mulher? Ou como os dois em um, chamado autor, independente do
gênero? Não importa. O que importa é aquela família que foi a primeira coisa
que inventei quando comecei a escrever esta história, e nem tinha história,
muito menos personagens.
Mas tenho vindo aqui escrever todo dia.
Faz parte da terapia.
Talvez Sarah tenha desistido de me arrancar coisas no divã.
Ou tenha pensado que essa técnica de escrever é melhor. Afinal, escrevo sozinha
neste quarto (ou cela?) e não tem nenhum rosto sério e inquisidor de psicólogo
me encarando. Acho melhor assim. Depois que a gente fala, não tem como voltar
atrás, mas sempre posso apagar o que escrevi, e não mostrar para ninguém aquilo
que está no arquivo, ou na memória do computador ou seja lá em que raio de
lugar este texto esteja sendo salvo. Cuidado com os ladrões de textos e de
ideias na internet, que abundam cada vez mais, você me adverte. Não se preocupe.
Acredite, vou dar um jeito nisso tudo. Mas, imagina, se me roubassem e
publicassem como sendo de outro, ou outra, ia ficar furiosa e terrivelmente
frustrada, mas no fundo, lá no fundinho, no porão do meu espírito, ia ficar
orgulhosa. Tipo, se alguém roubou meu texto foi porque gostou do que escrevi.
Claro, podia até transformar esses escritos catárticos e um tanto obsessivos em
algo concreto depois que tudo terminar.
Mas como disse em uma dessas últimas noites, quero mudar o
fim. É só mudar, diz você, mas e se eu não puder mudar? Se eu estiver escrevendo
sobre algo que já aconteceu?
É apenas uma história, não é a vida.
Bom, tomara que não.
(acabo de pensar que seu nome é Jonas, porque Jonas é nome
de um irmão, mas pode ser apenas coisa da minha cabeça e, sei lá por quê, ainda
não é hora de você entrar nesta história, que até aqui é apenas uma historinha
boba que uma terapeuta sugeriu que eu criasse como uma técnica psicanalítica
para resgatar sei lá o quê. Mas em breve saberemos. Vou continuar escrevendo e,
por favor, apareça amanhã. Preciso da sua ajuda para passar por isso. Se somos
mesmos irmãos, não abandone sua irmã. Além desta história e deste quarto, e
daquilo que não consigo lembrar, parece que não sobrou muita coisa. De qualquer forma, hoje é o
décimo quinto dia que escrevo consecutivo, então podemos considerar que estou
debutando. Apenas intuo, e não sei explicar por que também, as coisas não vão
mais ser as mesmas a partir de agora. O relógio continua correndo, mas como
disse, não me importo mais com ele.)
Agora sei que falaste comigo, narradora. Respondo-te: coincidentemente Jonas é um personagem da história que venho escrevendo em paralelo contigo. Maria é teu nome e não gostas dele… Por que será? Será que sei o motivo? Intuo. Na verdade, todas as histórias não são de verdade, tudo depende do jeito de contar, não é mesmo? Tu só escreves durante a noite e eu não sei em que momento do dia venho por aqui: tarde ou manhã? Não sei. À noite não é, por certo, pois as noites são para dormir, quando nos deixam, as pessoas ou os pesadelos que teimam em repetir-se. Já te disse: tu me inspiras. E tua história, ainda que te roubem, jamais conseguirão a chave para decodifícá-la, pois a chave de todos os mistérios particulares só existe na cabeça do autor, ou da autora, original. Desejo-te então forças, Maria, para que sigas teu intento de escrever. Teu leitor.
ResponderExcluirResposta da Maria: "Maria é meu primeiro nome, do qual nunca gostei. E nem lembrava que tinha chamado meu irmão de Jonas. Tu escreve sobre ele também? Seria o mesmo Jonas? Obrigado, vou continuar escrevendo. Continue vindo me visitar. Mas não esqueça. Todo dia escrevo, mas só escrevo se você vier. Tu também me inspiras."
Excluir15 é um número bom!
ResponderExcluirÉ um número e tanto, né?
Excluir