Talvez sejam os remédios. Dormi demais. Estou com sono. Não
ia aparecer hoje.
Mas se eu não vier, talvez você não venha. Nunca mais.
Podemos nos desencontrar, e esperei tanto, e espero tanto, por um novo encontro
que não posso me dar esse direito. Não ia me perdoar.
Não vou me perdoar.
Nunca me perdoei.
O torpor permanece, de novo as imagens dançam feito fumaça no
filtro do meu cérebro. E então somem.
Anotei hoje no caderno, antes de vir aqui, algo que talvez
interesse a você. Dizia: “a mãe sai para trabalhar e o pai abusa da criança.”
E em outro trecho, no mesmo caderno: “a situação de abuso
pode ter sido no armazém.”
O que isso tem a ver comigo? E isso tem a ver comigo? Era só
uma história, não era? Apenas alguém que começa a escrever sem saber o que vai
escrever, sem saber a história que vai contar, sem saber a narrativa, o enredo,
os personagens, nada. E então apareceram o homem alto e moreno, a mulher, a
irmã. E Clara. A praça. O armazém, ora aberto, ora fechado.
Deus, diga que essa história não é o que estou pensando.
É apenas uma história, fruto da minha mente. Mas então de
onde vieram essas imagens? Houve realmente um incêndio? E por que de tanta
chuva? Hoje não está chovendo. Teria o céu se cansado de chorar? Mais alguém
que se cansou de chorar? Eu, quem sabe? Você, que talvez tenha chorado, e não
me contou porque nem sabia que você existia, e a cada dia tenho que escrever
para que você exista, para que fique vivo. Você também quer recuperar a sua
história. Nossa história.
Pais abusadores. Mães ocupadas. Ou mães abusadoras e pais
ocupados? A mãe estava no hospital. Escrevi que era depressão pós-parto, e não
sei de onde saiu isso. Agora me questiono: como ela foi parar lá? E ela já
saiu? Ela está viva? O mais há nesta história que vou tateando a cada noite, a
cada suspiro, tateando conforme vou escrevendo, e escrevendo como quem tateia?
Sarah – lembra dela? – não vai me dar as respostas. Acho que Sarah sabe, mas
ouvi que os terapeutas não podem nos explicar a charada. A gente tem que chegar
lá por si só. Com a mão deles agarrada na nossa, mas a conclusão tem que ser
nossa. Ela sabe, ou acho que sabe, ou ela acha que sabe, da verdade. Mas não
vai me contar. E já não sei se quero que conte.
Já disse que não gosto do meu primeiro nome. Você tem me
acompanhado? Porque escrevo aqui toda noite, e nem sei bem porque de noite, mas
tem que ser noite, e tudo para você. Lembro de ter comentado que eu tinha medo
do escuro. Por quê? O que aconteceu de noite? E era noite mesmo, ou apenas
escuro? Veja, estou seguindo as pistas que esta escrita me manda a cada noite,
conforme vou avançando no texto. Tenho certeza que vou jogar tudo fora depois,
ninguém pode ler isso aqui. Nunca. Mas talvez você queira continuar lendo. Só
porque eu disse que não podia.
Se temos mesmo traços familiares, a teimosia também faz
parte do seu DNA. Teimosia, perseverança, obsessão, é tudo a mesma coisa. É
sempre a mesma coisa, depende do ponto de vista. Mas continuo tateando. O que
aconteceu no armazém? Será que ele estava fechado porque era domingo? E se
estava fechado, mesmo assim, aconteceu alguma coisa lá dentro?
Meu corpo cansa de novo. Escrever cansa. E dói. Dói palavra
por palavra. Mas preciso continuar escrevendo. E mesmo que não queira, mesmo
que não lembre, mesmo que queira mudar o final, mesmo que queira mudar o
passado, mudar o universo, ressignificar a vida, para usar um termo que Sarah
usa, mesmo assim: tenho que ir até o fim disso.
Está ficando bem mais… interessante! :-)
ResponderExcluirObrigado. E tu vê, e a história saiu do nada...:)
ExcluirAbraços e até mais tarde - o Nanowrimo está funcionando maravilhosamente, porque me obriga a escrever todo dia...:)