Estava cheia de ideias hoje. Maria Cheia de Ideias.
E de novo não anotei.
E de novo esqueci.
Pensei em não falar de Clara hoje.
Mas também pensei que tem algum motivo de por que não
consigo criar um nome para aquele homem moreno que inventei. Se inventei, é só
inventar. É só escrever, tão fácil. Mas talvez Clara também não saiba o nome
dele. Eu sei, faz poucas linhas que disse que não ia falar nela. Então, o quê?
Recaí? Falando nisso, hoje me ocorreu que esse homem cujo nome não consigo
conceber, provavelmente por imaturidade intelectual, voltou a beber depois de
dez anos abstinente. Isso é um dado interessante. Ele não bebia. Se Clara, de
quem não vou falar hoje, era pequena, então talvez ela nunca tivesse visto ele
beber. Mas depois de dez anos, ele voltou a beber. Foi assim: para comemorar
que fazia dez anos que estava abstêmio, ele resolveu comemorar com um brinde.
Não tenho certeza, mas em minha mente era um uísque caro. Escolha um. Johnnie
Walker, Chivas, Cavalo Branco.
Eu não sei.
Também não bebo.
Digamos que fosse um Chivas. Um dezoito anos. Não, vinte
anos. Ele ia comemorar seus dez anos com um vinte anos. E então ele tomou um
gole. E destruiu a casa inteira. Bateu na mulher, bateu na filha (Clara? não sei
se Clara era filha dele) e saiu por aí. Depois voltou. E no outro dia, comprou
mais bebida. Mas por que não vi ele bebendo quando estava brincando na pracinha
com Clara? Talvez ele ainda não tivesse voltado a beber. As coisas que crio, já
que crio sem o menor planejamento, e continuo sem ter a menor ideia do que vou
escrever antes de sentar aqui, talvez por esquecimento, talvez por não ser nem
provavelmente jamais serei escritora, apenas vêm a minha mente. Confesso que
gosto desse exercício de ir esticando as frases, porque é como esticar a vida,
correr cem metros a mais quando a gente não aguenta mais correr. Acontece que
de vez em quando eu me perco no que estava divagando.
Eu esqueço das coisas. Já disse isso?
Pode ter a ver com as dores que sinto pelo corpo. Pode ter a
ver com algum acidente que deve ter ocorrido, e que talvez seja o que me trouxe
a este quarto.
Escreva o que os leitores querem ler, diz você. Mas escrevo
para mim. Ninguém vai ler. Por isso só tenho que agradar a mim. Sarah disse
para eu descer fundo. Não sei se já consegui, mas juro que estou tentando.
Ouço canto de pássaros do outro lado da janela. Pássaros
cantam à noite? Não é o som de corujas, é o mesmo cantar dos pássaros quando o
dia nasce. Mas é noite, e ainda não é tarde.
Esta história é sobre Clara ou sobre mim?
Talvez seja sobre o homem cujo nome não consigo lembrar. Ou
não consigo inventar. Você tem algum nome para me dar? Você que quem sabe me
lê, mesmo que eu saiba que ninguém vai me ler, e nem quero. Assim posso
escrever o que eu quiser. Porque se não for assim, não escrevo nada. Hoje ouvi
Sarah falando, ou li em algum livro, não importa, que quando a criança sofre um
trauma é como se uma enchente passasse e a gente não pode suportar tudo aquilo
vindo, e por isso não consegue mais simbolizar, ou seja, não consegue falar
sobre aquilo, nem brincar, já que a gente deságua nossas angústias nas
brincadeiras. Ah, psicanalistas. Será que é por isso que Clara, quer dizer,
Sarah disse para eu escrever? Escrever para desaguar as angústias. Ela acha que
vou conseguir achar a chave do cofre se eu escrever. Por isso tenho escrito,
mesmo sem vontade, mesmo sem inspiração ou a menor ideia do que vai vir na
frase seguinte. Na verdade, nem estou escrevendo. Estou apenas pensando em voz
alta. Ou pensando sem voz, mas com o auxílio do teclado. Pelo menos, desde que
vim para cá, aprendi a digitar sem olhar para as letras do teclado, o que quer
dizer que não sou uma inútil.
Não sou uma inútil, apesar do que disseram.
Tenho fome de novo, mas desta vez não vou parar de escrever
para comer.
Por que o homem voltou a beber depois de dez anos? Sim, ele
foi comemorar. Mas será que foi só isso? Talvez ele tenha se transformado em
alguém que muitos não conheciam, pelo menos quem tinha algum vínculo afetivo
com ele há menos de dez anos.
Sarah, assim como Tchekov, disse para escrever até os dedos
quebrarem. Mas tenho me cansado e eles não quebram. Tantas coisas quebradas.
Talvez lembre de mais coisas que se perderam pelo caminho, porque tenho certeza
que foram várias.
E no quadro que vejo agora, a mulher está separada do homem
moreno. A mulher está em depressão no hospital. A irmã ficou na casa. O homem
está tomando banho com uma criança. Ele toca nela. Quem é a criança que não
consigo ver?
Você vai dizer que é Clara, e penso nisso também, mas pode
ser que seja um garotinho. Tem um garotinho, que acho que é mais velho do que
Clara, e que eu não tinha visto antes. Eles não estão na praça, estão tomando
banho. É outro filho do homem moreno? É sobrinho? Enteado? Não tinha pensado em
enteado. Pensei que eles eram uma família, e até devem ser. Mas não sei que
lugar ocupa cada um nesta história.
Penso em parar de escrever. Não apenas hoje, mas para todo o
sempre. Ia fazer diferença para você? Para mim, não sei. Talvez o você a quem
me dirijo, pensei agora, seja uma outra instância do eu, e você na verdade sou
eu e eu sou você.
Ah, psicanalistas.
Mas talvez essa filosofia que estou inventando, assim sem
inventar, esconda algo que ainda não consigo enxergar, um nó – ou vários nós –
que não sei se vai, ou vão, ser desatados.
Acho que esta história não vai dar em nada. Vou parar por
aqui. Chega.
Não vai parar. Não vamos. risos
ResponderExcluirAgora você me calou. Seu leitor.
ResponderExcluirMais uma chance, então.
ExcluirEscolho Jack Daniels. Porque é o que estou bebendo neste momento.
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