Sei lá por que, me deu raiva agora.
Muita raiva.
De repente, intuí como termina esta história.
Eu vi, mas fingi que não vi.
Um dia você vai entender. Espero que entenda, espero que
alguém entenda. Talvez eu entenda, mas isso não é assunto para agora. Agora não
é um bom momento.
Voltemos a praça. Tem um escorregador e quatro balanços, de
diferentes cores. Quatro gangorras também, mas não lembro as cores. No fim do
escorregador, um quadrado com areia dentro. Um cercadinho, eu diria, e o homem
grande brinca com a garotinha. O homem alto e moreno brinca com Clara. A
mulher, não sei onde está, e não consigo vê-la. Apenas anotei em algum lugar:
mãe com depressão pós-parto e irmã se muda para cuidar da criança. Esta criança
é Clara? Cinco anos? Ela parecia uma garotinha feliz. Poderia ter sido a menina
mais feliz do mundo, como toda criança feliz, sempre a mais feliz do mundo.
Poderia e não foi, ou poderia ter sido algo mais?
O armazém fica lá nos fundos, atrás dos outros prédios,
longe demais para uma criança ir sozinha até lá. O armazém está fechado. Deve
ser domingo. O homem brinca com Clara. Como é o seu nome? Ele é íntimo demais
para um homem com uma criança, ou isso seria apenas meu olhar de pessoa adulta
olhando como adulto para a criança, que não tem a mesma ideia de sexualidade do que eu? Ainda não é hora de falar dessas coisas. Apenas intuí como esta história
termina, e ainda posso mudar seu final. Neste momento frangível do tempo, para
roubar a expressão de Stephen King, aquilo que mais quero é mudar o fim. Se o
fim for mesmo esse que sonhei, que sonhei sem dormir, e quisera ter dormido
para ter certeza que era apenas um sonho, então ainda espero que o fim mude
antes do fim. Por enquanto, tudo o que sei é que o armazém está fechado, então
deve ser domingo. O homem magro e alto de cabelos escuros brinca com Clara. Ela
parece feliz. A mulher, nem a mulher, que penso ser a oficial, nem a irmã, que
talvez tenha mesmo se mudado para a casa deles porque a irmã (Priscila?) teve
depressão pós-parto. O que aconteceu? O que acontece agora? E como viemos parar
aqui?
Como viemos parar aqui?
Para entender isso, vou ter que cavocar, mergulhar na areia
movediça do passado. E se não for inventado, deve ser recriado. Quem sabe mudar
o passado, assim mudaríamos o fim. Pobre Clara. Talvez ainda dê tempo, talvez
ninguém chegue lá. Talvez a descida do escorregador se demore mais e o tempo
possa parar. Uma descida que não tem fim, e quando Clara chega na areia, ela já
tem vinte ou vinte e cinco anos. O passado, se não foi deletado, pode ter
pulado para frente, feito um videocassete que a gente avança a velocidade –
lembra o que acontece quando você colocava o fast forward? E acabo de perceber
que o você para quem me dirijo, a pessoa que colocava o fast forward no vídeo, quando
mais ninguém tinha vídeo, a revolução das fitas VHS, pode ser uma outra pessoa
nesta família, alguém que entrou de gaiato, sem ser convidado, pela porta dos
fundos. Talvez esta história tenha mais gente do que planejava. Os personagens
vão nascendo nas esquinas dos parágrafos, entre uma frase e outra. Tem mais
gente nesta festa, e agora tenho certeza que tem mais gente do que comporta
este salão, e mais gente do que estava na lista. Penetras que vêm para estragar
– ou salvar? – a festa.
A raiva vai passando enquanto escrevo, e preciso continuar
escrevendo. A história já existe, e aos poucos ela vai se mostrando para mim,
tirando do mundo das ideias e colocando no concreto de um papel. Ou, vá lá, na
tela de um computador. Smartphone, ebook, seja lá onde você esteja me lendo.
Que bom que você continua por aí. Que bom que você não desistiu de mim, nem eu
de você. Desistir de você, desistir de escrever, é desistir de mim, e desistir
de mim é desistir da vida. E não posso desistir, não hoje. Espero que nem
amanhã, mas definitivamente: hoje não.
Talvez você espere até amanhã para continuar me lendo. Ou
queira continuar me lendo agora. Você tem curiosidade, quer saber o que
acontece com Clara. Quem é o homem alto e moreno, tipo, Homem Alto e Moreno, um
personagem. Mais um nesta trama. Infiltrados e submersos nesta narrativa
incerta.
Talvez funcione. E talvez a gente ainda possa mudar o final.
tudo é incerto,inclusive o final.Somos seres incertos e mutantes
ResponderExcluirIsso é verdade, e tudo pode sempre mudar. Mas, mesmo assim, fazemos planos para o futuro, na narrativa ou na vida real. Obrigado pela leitura. Abraço
ExcluirNão sei por que tua raiva, ó narrador, espero que não tenha sido pela tentativa de dar a essa história ou histórias um final. O relógio é cíclico, depois de meia-noite sempre vem meia-noite e um… segundo, minuto, recomeço da narração. Não sei, idéia que me foi dada pelos ponteiros, ou quem sabe os dígitos, para os quais pareceste olhar enquanto escrevias e eu lia. Sim, não pares de escrever, pois se parares, morreremos todos nós, pois até quem te lê é fruto da tua narração e só. :-)
ResponderExcluirBah, que show. Acho que tu também está virando personagem, hein? Obrigado, mais uma vez, pela leitura atenta. Seguimos... Ah, publiquei o post de hoje faz pouco...:)
Excluir“Pobre Clara. Talvez ainda dê tempo, talvez ninguém chegue lá. Talvez a descida do escorregador se demore mais e o tempo possa parar. Uma descida que não tem fim, e quando Clara chega na areia, ela já tem vinte ou vinte e cinco anos.” sempre me identifico com esse livro. Cada pedaço. Até parece que conta a minha história. Cada vez que eu leio é uma percepção diferente, mas sempre me identifico.
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