#PianoParaPequenaClaraNoJoSoares
#josoares
Sexta-feira,
14 de novembro de 2014
(pouco
depois das nove da noite)
Começo
a escrever, como sempre, sem ter a menor ideia do que vem pela frente neste
texto, sempre horrível, sempre na esperança de que ninguém leia. Apenas
escrevo. E sonho, de alguma forma. Sonhei com Sarah. Não lembro o que ela me
disse, mas estávamos em sua sala. Maria no consultório de Sarah. Ela disse
alguma coisa, e riu, e eu joguei uma bolinha de papel em sua direção. Podia ser
uma pedra, mas era uma bolinha de papel. Eu não entendo símbolos. Ela estava
sentada em minha frente, eu no divã, e quando dei por mim ela me beijou. Nos beijamos.
Na boca. Só que quando a gente se beijou, não era mais ela. Não era a Sarah de
antes do beijo, de antes de se levantar de sua cadeira.
E
então acordei.
Esqueci
detalhes.
Não
lembro de mais nada.
Não
entendo da simbologia dos sonhos.
Seria
eu tentando encontrar a mãe que um dia tive e que não lembro?
Meu
deus, quanta loucura.
Vi
Sabby hoje, sentada em uma poltrona, perto do corredor. Ela estava com um
vestido de festa, mostrando sua pele de leite, com os longos cabelos caídos
sobre ela. Coitada, deve ter achado que ia para uma festa. Bom, talvez ela vá.
Quem sou eu para dizer que não? Talvez eu mesma devesse ir em uma festa, mesmo
que fosse imaginária, como provavelmente é a dela, em vez de ficar aqui nesta
cela escrevendo essas bobagens. Ela me perguntou de onde tiro as frases que
escrevo. Se ela soubesse que até o que ela fala, assim como o que as outras
falam, o que as outras vivem, qualquer coisa é material para fazer o moinho
girar... A verdade é que não sei de onde tiro o que escrevo, mas às vezes uma
frase no corredor, ou na poltrona, como no caso dela, pode fazer nascer um
texto. Veja, eu não tinha NADA para escrever minutos atrás. E aqui estamos.
Que
bom que ninguém vai ler isso aqui.
Sabby
tem uma falta. Vi isso em seus olhos, como vejo nos olhos de todas nós. Dafne
passou por mim, no corredor, apressada para ir em algum lugar. Para onde, me pergunto,
neste fim de mundo? Talvez todas busquemos um lugar mental mais confortável do
que o nosso. Um lar, acho que é isso. Um lar.
É
isso.
Um
lar.
Uma
família.
Hoje
não está chovendo.
Me
arrepio. Essa coisa de “isso parece com”, segundo Sarah, é que vem do nosso
inconsciente. Ela me deu um livro para ler, mas ainda não tive coragem de abrir.
Nem ia escrever “coragem”, mas foi essa palavra que me veio à mente.
Eu
fujo. Porra, eu fujo. Mas estou no labirinto e esta estrada, por mais que eu
queira voltar, é de mão única. Não há volta. Ou há?
Estou
com saudades de Cris. Não vi mais ela. Não vi mais muita coisa.
O
que mais? Vou apenas registrando meus pensamentos em tempo real porque eles me
conduzem a algum lugar. Desconhecido, e tenho medo do desconhecido.
Medo
como uma criança no escuro.
De
novo, me arrepio. Mas não consigo parar de escrever. Criança com medo do
escuro. Clara no escuro. Maria, a mãe, procurando por Clara. De noite. Gritando
por sua princesinha que se perdeu na escuridão. Dentro ou fora de casa? Escuro
dentro de si. Claudius sabia onde estava Clara. Maldito, filho da puta, ele
sabia onde estava a pequena Clara. E ele não falou. E talvez tenha dito para
Clara não falar também. Talvez ele tenha dito, vamos pregar uma peça na mamãe.
Clara
nem sabia o que estava acontecendo com ela.
Mas
ela não gostava.
Ela
não gostava da brincadeira do papai.
E
papai não brincou apenas uma vez com ela.
Maldito,
filho da puta.
Mas
talvez Clara, se chegou a crescer, ou se chegasse a crescer, pudesse encontrar
algo para canalizar aquela dor. Aquelas faltas. A começar pela falta da
infância. Que terminou antes de começar. A busca pela infância, talvez
inatingível, seria um dos motivos de sua vida anos depois.
Talvez
ela pintasse quadros, como Dafne.
Ou
escrevesse um livro, como eu.
Maria,
a mãe, deve ter ensinado brincadeiras de mãe e filha para ela. Maria, boa mãe.
Maria, que tentou fazer a coisa certa. Maria que quis ser a melhor mãe do
mundo. E hoje acredito que ela foi mesmo. Não sei se amanhã vou acreditar
nisso. Mas hoje acredito.
E
acredito que se Dafne pode pintar, eu posso escrever.
Para
encontrar essa infância que se perdeu.
Assim
como a vida, que ainda existe. Sim, a vida existe.
Existe
em todas nós, meninas.
21:50
Maria observadora.
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