“Precisamos conversar”, disse
Selina, “Espere aí que eu já volto”, bateu a porta Franco, quatro horas antes
de retornar ao quarto onde havia deixado a esposa. Já era madrugada quando ele
trouxe consigo a fragrância etílica para desafiar o perfume de jasmim de
Selina, dormindo feito morta na outra extremidade da cama. E eles duelariam por
toda a noite, álcool e flor, homem e mulher. Antes de deixar-se desabar sobre o
colchão, Franco tentou lembrar desde quando eram casados, mas tamanho suplício,
deveriam ser vidas inteiras sem trégua. Quis enumerar quantos dias ficaram sem
um olhar sequer. “Vidas inteiras sem trégua”, disse com ódio. E desabou.
Primeiro dia de aula. O jovem
Franco e seu vizinho cuidam atentos os movimentos femininos do corredor. Fazem
comentários, especulam oportunidades. “Bem que aquela gracinha ali podia ser
nossa colega”, aponta Franco para a garota de cabelos lisos pelo ombro, pasta
debaixo do braço. Ela se aproxima dos dois e entra na porta ao lado, na mesma
sala em que permaneceriam o resto do ano. Seu vizinho diz que os deuses
sorriram para ele. Franco sorri de volta. O sino toca. Todos entram, a professora fecha a porta. Dá as
boas-vindas, diz que todos estavam cansados das férias e agora iam estudar pra
valer. Os alunos riem, fazem piadas. Franco é o último da fila. A menina é a
primeira, do outro lado da sala. Começam as apresentações. Os nomes e apelidos
sucedem devagar. A espera é longa. A medida em que os nomes vão se aproximando
do nome que mais queria saber, Franco respira menos e mais rápido. Nada mais
havia ao redor, exceto aquele nome a seguir. Ela, enfim, ergue o braço.
— Meu nome é Selina.
*
* *
Ao acordar, o
corpo com o peso do mundo, Franco não olha para o lado. Vai para o trabalho sem
se despedir da mulher. Como de costume. Apenas ao fim do caminho, ele recorda o
sonho. Franze a testa, ao constatar que a realidade onírica foi fiel à
realidade vivida. Foi exatamente daquele jeito que ele a viu pela primeira vez,
naquele começo de ano letivo. Vidas inteiras sem trégua atrás. E seguiu com sua
jornada de trabalho.
E seguiu com o
inferno que era sua vida, sem pensar mais naquele sonho idiota.
Não sabia mais
quando Selina estava em casa. E não fazia diferença. Chegar, ir embora, a
dualidade que movia seus dias. Franco não suportava mais a esposa e, tinha
certeza, o sentimento era correspondido. Achava ela feia, neurótica. Velha.
Passava mal todos os dias a caminho do lar. Queria ele não mais ter que voltar.
Mas sempre voltava. E os fins-de-semana eram os piores, intermináveis. Por
conta disso, passou a dormir mais e mais. Foi então que aconteceu de novo.
Fim do segundo
bimestre. Franco senta ao lado de Selina, classe a classe. O aluno mais
bagunceiro pede ajuda à aluna mais inteligente. Ele a observa hipnotizado resolver
aqueles cálculos trigonométricos extraterrestres. Ela vira para o lado e
percebe que o colega pouco se importa com o seno do coseno.
— Você não
está entendendo nada, não é? – ela pergunta, insinuando irritação.
— Não. Na
verdade, estava aqui olhando para as suas mãos.
— O que tem
elas?
— É que eu
gosto de mãos e as suas mãos são muito bonitas. Aí, fiquei com inveja do seu
namorado que tem esse belo par de mãos para fazer cafuné nele.
— Eu não tenho
namorado – ela diz, voltando aos cálculos.
— Não quer
arrumar um?
Ela larga o
lápis, a face permanece austera.
— Essa é a sua
melhor cantada?
— É. É sim.
Mas posso pensar em algo melhor, caso não tenha funcionado.
Selina
volta-se para o papel a sua frente. “Pois então, pense em algo melhor”. Franco
a observa. Séria. Rígida. Absorta na resolução dos triângulos em cima da
classe. Súbito, o lápis estanca. E a menina sorri. Um sorriso que se prolonga.
E vira para o colega, que corresponde. Franco abre a boca para dizer, então:
O despertador
estrondou. Franco, muitos anos mais velho, tentou lembrar o que havia dito para
a colega na ocasião. Ao levantar da cama, rumou para o banheiro. Antes de
fechar a porta, olhou para Selina, que ainda dormia.
*
* *
O tempo foi
passando. Segundo por segundo num interminável de minutos e momentos e semanas
e meses. Há muito tempo que Franco não tirava férias. O único repouso que
dispunha estava no serviço, que detestava. Não raro, buscava consolo em
conversas com amigos, que levavam semelhantes vidas conjugais. Tentava em vão aliviar
o sofrimento de uma dor que não doía, que era inércia, que era rotina.
Plantões
exaustivos no trabalho seguiram-se. E foi num deles, esgotado e em meio à fria
madrugada, que Franco não voltou para casa, adormecendo no sofá do escritório.
Três semanas
para o fim das aulas. Franco conversa com Selina dentro do ginásio, ao lado da
quadra de vôlei. Ambos estão sentados nas arquibancadas, abandonadas aos dois.
“Eu vou morrer se não te der um beijo agora”, diz ele. “Você não vai morrer”,
diz ela. “Não. Mas ainda assim quero te dar um beijo”. Selina ergue os olhos
para o teto semicilíndrico do lugar. “Me dê três motivos para eu te dar um
beijo”.
— Olhe, eu não
estou te pedindo em casamento. Eu só quero te dar um beijo.
— Bem, talvez
se me pedisse em casamento, eu te desse um beijo.
Franco foi
desperto do sofá antes de ver o beijo que iniciou o namoro com Selina. Um novo
dia estava começando. A mulher do cafezinho, que tão somente era a mulher do
cafezinho, lhe deu um bom-dia afetuoso. “Pra você também, um ótimo dia”, Franco
disse, feito moleque faceiro.
*
* *
A vida com
Selina permanecia a mesma. Perfeitos estranhos condenados a viverem na mesma
casa. Cúmplices, cada qual com sua solidão. Mas Franco deixou de se importar.
Os sonhos ficaram mais freqüentes. E eram sempre fiéis ao que havia acontecido.
E cronológicos. Franco passeou por todos os lugares que havia levado sua
namorada Selina, uma vez mais. Repetiu todas as frases românticas que outrora
encheram aqueles olhos femininos de lágrimas, de novo e de novo. Uma vez mais,
viveu. E sentia-se muito bem. Sentia-se jovem. Estava apaixonado por Selina,
mesmo que não suportasse a esposa da vida acordada. E a vida acordada não tinha
mais sentido. E não fazia a menor falta. Cumpria suas obrigações com disciplina,
dedicava-se ao trabalho, pagava suas contas. Mas tudo o que queria era chegar
em casa e dormir. Sonhar com Selina, linda e jovem que era.
Certa vez,
pensou em comentar de seus sonhos com a mulher, mas logo mudou de idéia. Sentia
calafrios, tremia apavorado, com medo de que os sonhos o abandonassem. Talvez
fosse parte de algum ritual, alguma mágica, cuja a condição para existir era:
sigilo absoluto. E confortava-se com a certeza de que, mesmo que descrevesse em
detalhes todos os sonhos que estava vivendo até então, nada mudaria entre ele e
Selina. Afinal, eram apenas sonhos.
Entretanto, a
medida que os sonhos evoluíam, aumentando a euforia e a paixão de Franco,
tornava-se quase insustentável não comentar daquilo com alguém. Decidiu então
que não faria mal se contasse para o melhor amigo alguns detalhes da sua outra
vida. A vida que ele havia escolhido viver, que era muito mais real do que a
vida acordada. E foi em um longo intervalo para o café que Franco contou tudo.
— Sabe – disse
o amigo –, algumas religiões acreditam que os sonhos são um universo paralelo.
Com uma linha de tempo e espaço diferente da nossa.
— Como assim?
— Você disse
que os sonhos aconteceram em ordem cronológica, no passado. Mas você pode
eventualmente ter um sonho sobre o futuro.
— De algo que
ainda vai acontecer?
— Exatamente.
— Que idiotice
– riu Franco. —Um sonho é um sonho e fim.
— Talvez. Mas
por que você nunca contou nada pra Selina?
— Porque ela
não ia se importar.
— Como você
tem tanta certeza?
Tudo o que
havia entre eles estava morto. Só o que tinha restado eram os sonhos. E ele
preferia morrer a estragar isso. E nada mudaria, nada mudaria. O amigo balançou
a cabeça, concordando. Voltaram ao serviço.
*
* *
E os sonhos continuaram. Cada vez mais belos, mais
reais. Sempre em sua cronologia rígida, imutável. Franco sonhava com as festas
do cursinho, as noites acordado estudando para o vestibular, os livros lidos na
faculdade. O primeiro emprego. O segundo, o terceiro. Os natais que passaram
juntos, na época de seu noivado. Selina, sempre presente. Sempre bela, cheia de
vida e ternura. Uma ternura que, talvez por intervenção divina, foi transposta
do sonho. Pela primeira vez em muito tempo, Franco voltava a falar com a
esposa. Era uma frase ao chegar em casa, outra antes de dormir. Depois, duas
frases ao chegar em casa, três antes de dormir. Uma ou outra quando acordava.
Vez ou outra, um telefonema no meio da tarde. A intensidade dos sonhos começou
a diminuir.
Ao entrar na cozinha, certo dia ao chegar da rua,
Franco perguntou ao abrir a geladeira, ares de distraído:
— O que tem de bom pra comer, Sel?
Ela nada respondeu. Depois de alguns segundos, ele
ergueu o olhar e viu Selina sorrindo, um sorriso há muito esquecido. Franco
perguntou o que havia acontecido.
— Você me chamou de Sel. Há anos você não me chama
de Sel.
Franco sorriu, espelho. Ela adorava ser chamada
assim, porque “Sel” rima com “Céu”. Ambos piscaram os olhos.
* * *
Selina e Franco voltaram a jantar juntos, conforme
permitia o tempo. Voltaram a jogar cartas, a tomar sorvete juntos, a andar de
bicicleta. Os sonhos agora se faziam muito raros, quase inexistiam. Na
madrugada do dia em que comemorariam bodas, Franco sonhou com um altar. A sua
frente, o padre. Ao seu lado, padrinhos e madrinhas. A música inicia, o coral
se faz presente. A platéia vira para trás, ao fundo da igreja. Selina vem
caminhando. Lenta. Soberana. O branco do vestido parece se espalhar por todo o
lugar. Pétalas de rosa de variadas tonalidades caem do teto. Franco não lembra
de flores descendo do céu em seu casamento, e tampouco se importa. O sonho é
ainda mais belo do que foi a realidade. As mulheres choram, os homens assoviam.
Todos aplaudem. As aias vêm na frente, fazendo festa. A música dá lugar ao
discurso. As alianças reluzem. Os dedos são preenchidos. Ambos se aceitam, até
que a morte os separe.
Algumas horas mais tarde, em sua vida acordada,
Franco trocou presentes com Selina, comemorando seu aniversário e quebrando uma
abstinência de anos. Consumiram champanhe sobre a mesa iluminada pelos candelabros.
Ao fim de sua ceia particular, Franco, já bêbado, começou a lembrar da noite do
casamento, e recordou com tamanha riqueza de detalhes que Selina emudeceu. E
começou a recordar todos aqueles sonhos, um a um, na ordem em que foram
vividos. Franco só interrompeu a narração quando Selina começou a chorar. Um
choro que nasceu contido e foi se afetando, afetando. Franco perguntou o que
houve, meu deus, o que houve? Selina começou a narrar os sonhos, um a um, em
ordem cronológica. Franco levou as mãos à cabeça. As lágrimas vieram ligeiro
para ele também. Só agora havia percebido. Ela sempre esteve presente. Em todos
os sonhos, desde o primeiro, ela sempre esteve lá. Todo aquele tempo. Selina
havia sonhado o sonho de Franco.
E as lágrimas que caíram ajudaram a fundir os
corpos.
Como um romance impossível entre o Sol e a Lua.
Eclipse ao som de violinos.
Cordas que podem parar o tempo.
Congelando um momento passageiro eterno.
* * *
Os meses seguintes foram costurados por um romance
inabalável. Tudo era novo, mesmo aquilo que já haviam feito milhões de vezes.
Estavam renascidos, rebatizados. Vivos novamente. Franco não mais queria
dormir. Cada minuto a menos acordado era um minuto a menos com sua amada. A
magia florescia deles e ao redor deles. Todos percebiam, era nítido: estavam
felizes. Os sonhos cessaram por completo.
O casal continuou fazendo as mesmas coisas com
vivacidade por mais sete meses. A estação estava mudando e, aos poucos, o novo
começou a ter gosto de reciclado. Custaram a acreditar. As risadas não eram
mais tão intensas, nem tão espontâneas. As cobranças e os defeitos voltaram,
tímidos. Uma ou outra briga. Os diálogos diminuíram. Junto deles, a magia.
Junto dela, seu tempo. “Deixe as folhas caírem”, disse Selina na cozinha.
Franco sabia que jamais seria a mesma coisa. Era começo de outono e seu tempo
havia acabado. E desta vez, os sonhos não voltaram.
Duas semanas antes de completarem novo aniversário,
pediram o divórcio. Selina foi morar no campo. Casou com um fazendeiro. Franco
mudou de emprego. Começou a dar aulas. Seu apartamento era coberto por objetos
e roupas espalhados pelo assoalho. Feito cacos desorganizados, tal qual sua
vida. As estações continuaram mudando. Os anos fugiam, apressados.
Na noite de Natal, época de nascimento, Franco dormiu
sozinho em seu apartamento. Na madrugada gélida o cobertor não se fez
suficiente. Seu corpo tremia. Os sinos que orquestraram seu sono foram os
mesmos que anunciaram o seu presente. Um sonho a mais.
Franco está sentado no banco da praça. O ar que o
circunda é cheio de juventude, rejuvenescedor. Ele ouve seu nome. Selina vem em
sua direção. Ambos trazem a paixão adolescente no olhar. Franco se assusta com
tamanha beleza, Selina nunca esteve tão linda. Ela se aproxima, senta no banco.
Franco faz um carinho em seu rosto e a beija. Permanecem a encarar um ao outro,
encantados. Ele olha para as mãos entrelaçadas, feito um elo inquebrável.
E só então percebe: estão com noventa anos.